sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Mujica: primor de discurso

Mais um discurso impecável do presidente uruguaio Pepe Mujica, este agora proferido na sessão anual da Assembleia Geral da ONU. Análise histórica, política, econômica e social primorosa. Sentimento, razão, razão, sentimento. 100% latino-americano, 100% humanismo! Parabéns, presidente!

Seguem link do discurso no youtube e, abaixo, matéria com íntegra textual traduzida e publicada pelo Jornal Zero Hora, do Rio Grande do Sul.

http://www.youtube.com/watch?v=OLef1zl7k4Q

* Foto extraída da internet.

Blog do Marcelo Uchôa

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Leia a íntegra do discurso de José Mujica na ONU

Presidente uruguaio criticou o capitalismo e o individualismo em discurso que empolgou nas Nações Unidas

Leia a íntegra do discurso de José Mujica na ONU Justin LANE/POOL
José Mujica durante discurso na ONU Foto: Justin LANE / POOL
 
Amigos, sou do sul, venho do sul. Esquina do Atlântico e do Prata, meu país é uma planície suave, temperada, uma história de portos, couros, charque, lãs e carne. Houve décadas púrpuras, de lanças e cavalos, até que, por fim, no arrancar do século 20, passou a ser vanguarda no social, no Estado, no Ensino. Diria que a social-democracia foi inventada no Uruguai.

Durante quase 50 anos, o mundo nos viu como uma espécie de Suíça. Na realidade, na economia, fomos bastardos do império britânico e, quando ele sucumbiu, vivemos o amargo mel do fim de mudanças funestas, e ficamos estancados, sentindo falta do passado.

Quase 50 anos recordando o Maracanã, nossa façanha esportiva. Hoje, ressurgimos no mundo globalizado, talvez aprendendo de nossa dor. Minha história pessoal, a de um rapaz — porque, uma vez, fui um rapaz — que, como outros, quis mudar seu tempo, seu mundo, o sonho de uma sociedade libertária e sem classes. Meus erros são, em parte, filhos de meu tempo. Obviamente, os assumo, mas há vezes que medito com nostalgia.

Quem tivera a força de quando éramos capazes de abrigar tanta utopia! No entanto, não olho para trás, porque o hoje real nasceu das cinzas férteis do ontem. Pelo contrário, não vivo para cobrar contas ou para reverberar memórias.

Me angustia, e como, o amanhã que não verei, e pelo qual me comprometo. Sim, é possível um mundo com uma humanidade melhor, mas talvez, hoje, a primeira tarefa seja cuidar da vida.
Mas sou do sul e venho do sul, a esta Assembleia, carrego inequivocamente os milhões de compatriotas pobres, nas cidades, nos desertos, nas selvas, nos pampas, nas depressões da América Latina pátria de todos que está se formando.

Carrego as culturas originais esmagadas, com os restos de colonialismo nas Malvinas, com bloqueios inúteis a este jacaré sob o sol do Caribe que se chama Cuba. Carrego as consequências da vigilância eletrônica, que não faz outra coisa que não despertar desconfiança. Desconfiança que nos envenena inutilmente. Carrego uma gigantesca dívida social, com a necessidade de defender a Amazônia, os mares, nossos grandes rios na América.

Carrego o dever de lutar por pátria para todos.
Para que a Colômbia possa encontrar o caminho da paz, e carrego o dever de lutar por tolerância, a tolerância é necessária para com aqueles que são diferentes, e com os que temos diferências e discrepâncias. Não se precisa de tolerância com aqueles com quem estamos de acordo.
A tolerância é o fundamento de poder conviver em paz, e entendendo que, no mundo, somos diferentes.

O combate à economia suja, ao narcotráfico, ao roubo, à fraude e à corrupção, pragas contemporâneas, procriadas por esse antivalor, esse que sustenta que somos felizes se enriquecemos, seja como seja. Sacrificamos os velhos deuses imateriais. Ocupamos o templo com o deus mercado, que nos organiza a economia, a política, os hábitos, a vida e até nos financia em parcelas e cartões a aparência de felicidade.

Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando não podemos, nos enchemos de frustração, pobreza e até autoexclusão.

O certo, hoje, é que, para gastar e enterrar os detritos nisso que se chama pela ciência de poeira de carbono, se aspirarmos nesta humanidade a consumir como um americano médio, seriam imprescindíveis três planetas para poder viver.

Nossa civilização montou um desafio mentiroso e, assim como vamos, não é possível satisfazer esse sentido de esbanjamento que se deu à vida. Isso se massifica como uma cultura de nossa época, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado.

Prometemos uma vida de esbanjamento, e, no fundo, constitui uma conta regressiva contra a natureza, contra a humanidade no futuro. Civilização contra a simplicidade, contra a sobriedade, contra todos os ciclos naturais.

O pior: civilização contra a liberdade que supõe ter tempo para viver as relações humanas, as únicas que transcendem: o amor, a amizade, aventura, solidariedade, família.
Civilização contra tempo livre que não é pago, que não se pode comprar, e que nos permite contemplar e esquadrinhar o cenário da natureza.

Arrasamos a selva, as selvas verdadeiras, e implantamos selvas anônimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com comprimidos, a solidão com eletrônicos, porque somos felizes longe da convivência humana.

Cabe se fazer esta pergunta, ouvimos da biologia que defende a vida pela vida, como causa superior, e a suplantamos com o consumismo funcional à acumulação.

A política, eterna mãe do acontecer humano, ficou limitada à economia e ao mercado. De salto em salto, a política não pode mais que se perpetuar, e, como tal, delegou o poder, e se entretém, aturdida, lutando pelo governo. Debochada marcha de historieta humana, comprando e vendendo tudo, e inovando para poder negociar de alguma forma o que é inegociável. Há marketing para tudo, para os cemitérios, os serviços fúnebres, as maternidades, para pais, para mães, passando pelas secretárias, pelos automóveis e pelas férias. Tudo, tudo é negócio.

Todavia, as campanhas de marketing caem deliberadamente sobre as crianças, e sua psicologia para influir sobre os adultos e ter, assim, um território assegurado no futuro. Sobram provas de essas tecnologias bastante abomináveis que, por vezes, conduzem a frustrações e mais.

O homenzinho médio de nossas grandes cidades perambula entre os bancos e o tédio rotineiro dos escritórios, às vezes temperados com ar condicionado. Sempre sonha com as férias e com a liberdade, sempre sonha com pagar as contas, até que, um dia, o coração para, e adeus. Haverá outro soldado abocanhado pelas presas do mercado, assegurando a acumulação. A crise é a impotência, a impotência da política, incapaz de entender que a humanidade não escapa nem escapará do sentimento de nação. Sentimento que está quase incrustado em nosso código genético.

Hoje é tempo de começar a talhar para preparar um mundo sem fronteiras. A economia globalizada não tem mais condução que o interesse privado, de muitos poucos, e cada Estado Nacional mira sua estabilidade continuísta, e hoje a grande tarefa para nossos povos, em minha humilde visão, é o todo.

Como se isto fosse pouco, o capitalismo produtivo, francamente produtivo, está meio prisioneiro na caixa dos grandes bancos. No fundo, são o vértice do poder mundial. Mais claro, cremos que o mundo requer a gritos regras globais que respeitem os avanços da ciência, que abunda. Mas não é a ciência que governa o mundo. Se precisa, por exemplo, uma larga agenda de definições, quantas horas de trabalho e toda a terra, como convergem as moedas, como se financia a luta global pela água e contra os desertos.

Como se recicla e se pressiona contra o aquecimento global. Quais são os limites de cada grande questão humana. Seria imperioso conseguir consenso planetário para desatar a solidariedade com os mais oprimidos, castigar impositivamente o esbanjamento e a especulação. Mobilizar as grandes economias não para criar descartáveis com obsolescência calculada, mas bens úteis, sem fidelidade, para ajudar a levantar os pobres do mundo. Bens úteis contra a pobreza mundial. Mil vezes mais rentável que fazer guerras. Virar um neo-keynesianismo útil, de escala planetária, para abolir as vergonhas mais flagrantes deste mundo.

Talvez nosso mundo necessite menos de organismos mundiais, desses que organizam fórums e conferências, que servem muito às cadeias hoteleiras e às companhias aéreas e, no melhor dos casos, não reúne ninguém e transforma em decisões...

Precisamos sim mascar muito o velho e o eterno da vida humana junto da ciência, essa ciência que se empenha pela humanidade não para enriquecer; com eles, com os homens de ciência da mão, primeiros conselheiros da humanidade, estabelecer acordos para o mundo inteiro. Nem os Estados nacionais grandes, nem as transnacionais e muito menos o sistema financeiro deveriam governar o mundo humano. Sim, a alta política entrelaçada com a sabedoria científica, ali está a fonte. Essa ciência que não apetece o lucro, mas que mira o por vir e nos diz coisas que não escutamos. Quantos anos faz que nos disseram coisas que não entendemos? Creio que se deve convocar a inteligência ao comando da nave acima da terra, coisas assim e coisas que não posso desenvolver nos parecem impossíveis, mas requeririam que o determinante fosse a vida, não a acumulação.

Obviamente, não somos tão iludidos, nada disso acontecerá, nem coisas parecidas. Nos restam muitos sacrifícios inúteis daqui para diante, muitos remendos de consciência sem enfrentar as causas. 
Hoje, o mundo é incapaz de criar regras planetárias para a globalização e isso é pela enfraquecimento da alta política, isso que se ocupa de todo. Por último, vamos assistir ao refúgio de acordos mais ou menos "reclamáveis", que vão plantear um comércio interno livre, mas que, no fundo, terminarão construindo parapeitos protecionistas, supranacionais em algumas regiões do planeta. A sua vez, crescerão ramos industriais importantes e serviços, todos dedicados a salvar e a melhorar o meio ambiente. Assim vamos nos consolar por um tempo, estaremos entretidos e, naturalmente, continuará a parecer que a acumulação é boa, para a alegria do sistema financeiro.

Continuarão as guerras e, portanto, os fanatismos, até que, talvez, a mesma natureza faça um chamado à ordem e torne inviáveis nossas civilizações. Talvez nossa visão seja demasiado crua, sem piedade, e vemos ao homem como uma criatura única, a única que há acima da terra capaz de ir contra sua própria espécie. Volto a repetir, porque alguns chamam a crise ecológica do planeta de consequência do triunfo avassalador da ambição humana. Esse é nosso triunfo e também nossa derrota, porque temos impotência política de nos enquadrarmos em uma nova época. E temos contribuído para sua construção sem nos dar conta.

Por que digo isto? São dados, nada mais. O certo é que a população quadruplicou e o PIB cresceu pelo menos vinte vezes no último século. Desde 1990, aproximadamente a cada seis anos o comércio mundial duplica. Poderíamos seguir anotando dados que estabelecem a marcha da globalização. O que está acontecendo conosco? Entramos em outra época aceleradamente, mas com políticos, enfeites culturais, partidos e jovens, todos velhos ante a pavorosa acumulação de mudanças que nem sequer podemos registrar. Não podemos manejar a globalização porque nosso pensamento não é global. Não sabemos se é uma limitação cultural ou se estamos chegano a nossos limites biológicos.

Nossa época é portentosamente revolucionária como não conheceu a história da humanidade. Mas não tem condução consciente, ou ao menos condução simplesmente instintiva. Muito menos, todavia, condução política organizada, porque nem se quer tivemos filosofia precursora ante a velocidade das mudanças que se acumularam.

A cobiça, tão negativa e tão motor da história, essa que impulsionou o progresso material técnico e científico, que fez o que é nossa época e nosso tempo e um fenomenal avanço em muitas frentes, paradoxalmente, essa mesma ferramenta, a cobiça que nos impulsionou a domesticar a ciência e transformá-la em tecnologia nos precipita a um abismo nebuloso. A uma história que não conhecemos, a uma época sem história, e estamos ficando sem olhos nem inteligência coletiva para seguir colonizando e para continuar nos transformando.

Porque se há uma característica deste bichinho humano é a de que é um conquistador antropológico.

Parece que as coisas tomam autonomia e essas coisas subjugam os homens. De um lado a outro, sobram ativos para vislumbrar tudo isso e para vislumbrar o rombo. Mas é impossível para nós coletivizar decisões globais por esse todo. A cobiça individual triunfou grandemente sobre a cobiça superior da espécie. Aclaremos: o que é "tudo", essa palavra simples, menos opinável e mais evidente? Em nosso Ocidente, particularmente, porque daqui viemos, embora tenhamos vindo do sul, as repúblicas que nasceram para afirmas que os homens são iguais, que ninguém é mais que ninguém, que os governos deveriam representar o bem comum, a justiça e a igualdade. Muitas vezes, as repúblicas se deformam e caem no esquecimento da gente que anda pelas ruas, do povo comum.

Não foram as repúblicas criadas para vegetar, mas ao contrário, para serem um grito na história, para fazer funcionais as vidas dos próprios povos e, por tanto, as repúblicas que devem às maiorias e devem lutar pela promoção das maiorias.

Seja o que for, por reminiscências feudais que estão em nossa cultura, por classismo dominador, talvez pela cultura consumista que rodeia a todos, as repúblicas frequentemente em suas direções adotam um viver diário que exclui, que se distância do homem da rua.

Esse homem da rua deveria ser a causa central da luta política na vida das repúblicas. Os gobernos republicanos deveriam se parecer cada vez mais com seus respectivos povos na forma de viver e na forma de se comprometer com a vida.

A verdade é que cultivamos arcaísmos feudais, cortesias consentidas, fazemos diferenciações hierárquicas que, no fundo, amassam o que têm de melhor as repúblicas: que ninguém é mais que ninguém. O jogo desse e de outros fatores nos retém na pré-história. E, hoje, é impossível renunciar à guerra cuando a política fracassa. Assim, se estrangula a economia, esbanjamos recursos.

Ouçam bem, queridos amigos: em cada minuto no mundo se gastam US$ 2 milhões em ações militares nesta terra. Dois milhões de dólares por minuto em inteligência militar!! Em investigação médica, de todas as enfermidades que avançaram enormemente, cuja cura dá às pessoas uns anos a mais de vida, a investigação cobre apenas a quinta parte da investigação militar.

Este processo, do qual não podemos sair, é cego. Assegura ódio e fanatismo, desconfiança, fonte de novas guerras e, isso também, esbanjamento de fortunas. Eu sei que é muito fácil, poeticamente, autocriticarmo-nos pessoalmente. E creio que seria uma inocência neste mundo plantear que há recursos para economizar e gastar em outras coisas úteis. Isso seria possível, novamente, se fôssemos capazes de exercitar acordos mundiais e prevenções mundiais de políticas planetárias que nos garantissem a paz e que a dessem para os mais fracos, garantia que não temos. Aí haveria enormes recursos para deslocar e solucionar as maiores vergonhas que pairam sobre a Terra. Mas basta uma pergunta: nesta humanidade, hoje, onde se iria sem a existência dessas garantias planetárias? Então cada qual esconde armas de acordo com sua magnitude, e aqui estamos, porque não podemos raciocinar como espécie, apenas como indivíduos.

As instituições mundiais, particularmente hoje, vegetam à sombra consentida das dissidências das grandes nações que, obviamente, querem reter sua cota de poder.

Bloqueiam esta ONU que foi criada com uma esperança e como um sonho de paz para a humanidade. Mas, pior ainda, desarraigam-na da democracia no sentido planetário porque não somos iguais. Não podemos ser iguais nesse mundo onde há mais fortes e mais fracos. Portanto, é uma democracia ferida e está cerceando a história de um possível acordo mundial de paz, militante, combativo e verdadeiramente existente. E, então, remendamos doenças ali onde há eclosão, tudo como agrada a algumas das grandes potências. Os demais olham de longe. Não existimos.

Amigos, creio que é muito difícil inventar uma força pior que nacionalismo chovinista das grandes potências. A força é que liberta os fracos. O nacionalismo, tão pai dos processos de descolonização, formidável para os fracos, se transforma em uma ferramenta opressora nas mãos dos fortes e, nos últimos 200 anos, tivemos exemplos disso por toda a parte.

A ONU, nossa ONU, enlanguece, se burocratiza por falta de poder e de autonomia, de reconhecimento e, sobretudo, de democracia para o mundo mais fraco que constitui a maioria esmagadora do planeta. Mostro um pequeno exemplo, pequenino. Nosso pequeno país tem, em termos absolutos, a maior quantidade de soldados em missões de paz em todos os países da América Latina. E ali estamos, onde nos pedem que estejamos. Mas somos pequenos, fracos. Onde se repartem os recursos e se tomam as decisões, não entramos nem para servir o café. No mais profundo de nosso coração, existe um enorme anseio de ajudar para que o homem saia da pré-história. Eu defino que o homem, enquanto viver em clima de guerra, está na pré-história, apesar dos muitos artefatos que possa construir.

Até que o homem não saia dessa pré-história e arquive a guerra como recurso quando a política fracassa, essa é a larga marcha e o desafio que temos daqui adiante. E o dizemos com conhecimento de causa. Conhecemos a solidão da guerra. No entanto, esses sonhos, esses desafios que estão no horizonte implicam lutar por uma agenda de acordos mundiais que comecem a governar nossa história e superar, passo a passo, as ameaças à vida. A espécie como tal deveria ter um governo para a humanidade que superasse o individualismo e primasse por recriar cabeças políticas que acudam ao caminho da ciência, e não apenas aos interesses imediatos que nos governam e nos afogam.

Paralelamente, devemos entender que os indigentes do mundo não são da África ou da América Latina, mas da humanidade toda, e esta deve, como tal, globalizada, empenhar-se em seu desenvolvimento, para que possam viver com decência de maneira autônoma. Os recursos necessários existem, estão neste depredador esbanjamento de nossa civilização.

Há poucos dias, fizeram na Califórnia, em um corpo de bombeiros, uma homenagem a uma lâmpada elétrica que está acesa há cem anos. Cem anos que está acesa, amigo! Quantos milhões de dólares nos tiraram dos bolsos fazendo deliberadamente porcarias para que as pessoas comprem, comprem, comprem e comprem.

Mas esta globalização de olhar para todo o planeta e para toda a vida significa uma mudança cultural brutal. É o que nos requer a história. Toda a base material mudou e cambaleou, e os homens, com nossa cultura, permanecem como se não houvesse acontecido nada e, em vez de governarem a civilização, deixam que ela nos governe. Há mais de 20 anos que discutimos a humilde taxa Tobin. 

Impossível aplicá-la no tocante ao planeta. Todos os bancos do poder financeiro se irrompem feridos em sua propriedade privada e sei lá quantas coisas mais. Mas isso é paradoxal. Mas, com talento, com trabalho coletivo, com ciência, o homem, passo a passo, é capaz de transformar o deserto em verde.

O homem pode levar a agricultura ao mar. O homem pode criar vegetais que vivam na água salgada. A força da humanidade se concentra no essencial. É incomensurável. Ali estão as mais portentosas fontes de energia. O que sabemos da fotossíntese? Quase nada. A energia no mundo sobra, se trabalharmos para usá-la bem. É possível arrancar tranquilamente toda a indigência do planeta. É possível criar estabilidade e será possível para as gerações vindouras, se conseguirem raciocinar como espécie e não só como indivíduos, levar a vida à galáxia e seguir com esse sonho conquistador que carregamos em nossa genética.

Mas, para que todos esses sonhos sejam possíveis, precisamos governar a nos mesmos, ou sucumbiremos porque não somos capazes de estar à altura da civilização em que fomos desenvolvendo.

Este é nosso dilema. Não nos entretenhamos apenas remendando consequências. Pensemos na causa profundas, na civilização do esbanjamento, na civilização do usa-tira que rouba tempo mal gasto de vida humana, esbanjando questões inúteis. Pensem que a vida humana é um milagre. Que estamos vivos por um milagre e nada vale mais que a vida. E que nosso dever biológico, acima de todas as coisas, é respeitar a vida e impulsioná-la, cuidá-la, procriá-la e entender que a espécie é nosso "nós".

Obrigado.

Tradução: Fernanda Grabauska

Fonte: Jornal Zero Hora, 26/09/13, disponível em: http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/mundo/noticia/2013/09/leia-a-integra-do-discurso-de-jose-mujica-na-onu-4281650.html

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Mesmo com lei, violência persiste

Estudo mostra que, mesmo com a Lei Maria da Penha, feminicídios não diminuíram no País. Em 2012, no Ceará, 197 mulheres foram assassinadas

 
A Lei Maria da Penha não conseguiu impactar nas estatísticas de assassinatos de mulheres no Brasil. A conclusão é de estudo divulgado ontem pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). 

Segundo o documento, mesmo com a legislação, criada em agosto de 2006, milhares de mulheres continuam sendo mortas violentamente no País: a taxa era de 5,41 óbitos por 100 mil mulheres em 2001. Em 2011, passou para 5,43.

A pesquisa indica ainda que a cada 1h30min, entre 2009 e 2011, uma mulher foi morta no Brasil. No Ceará, nesse mesmo período, foram 684 feminicídios. Em 2012, segundo a assessora da Coordenadoria de Politicas Especiais para a Mulher, Yanaee Melo, 197 mulheres foram assassinadas no Estado.

A defensora pública Elizabeth Chagas, do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher da Defensoria Pública do Estado (Nudem), diz que a lei trouxe “muitos avanços”. “As formas de violência doméstica e familiar foram definidas, instituíram-se medidas protetivas valiosas, ficaram proibidas penas de prestações pecuniárias, não mais se considera a violência contra mulher como crime de pequeno e médio potencial ofensivo, tratado em juizados especiais”, detalha.

Segundo ela, é preciso agora estabelecer políticas públicas que garantam às mulheres o cumprimento da lei. No Ceará, descreve, só existem duas varas e sete delegacias especializadas; em Fortaleza, apenas dois defensores públicos - números insuficientes para a demanda. Faz-se necessário fortalecer a rede de atenção às mulheres, reforça Yanaee Melo. “O que se percebe é o impacto de uma mudança de cultura que vem se instituindo pouco a pouco a partir da lei. Governo e sociedade civil precisam fortalecer essa rede”, diz.

Ela destaca, porém, que o Ceará avançou com a criação de 74 conselhos municipais dos direitos da mulher e que, até dezembro, duas novas delegacias especializadas serão criadas: uma em Quixadá e outra em Pacatuba.

“A lei é só mais um elemento entre tantos outros. Ela é instrumento que tem que se somar à ação de vários outros sujeitos”, lembra. “Uma lei por si mesma não é capaz de resolver problemas constituídos historicamente”, defende Hayeska Costa Barroso, assistente social e pesquisadora do Observatório da Violência contra a Mulher, da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Ela fala que campanhas sobre o tema devem ser constantes. “É preciso entender que a legislação é adequada e arranjar estratégias para que ela ganhe significado no cotidiano, não só nas instituições que a partir dela foram criadas.”

Multimídia

A pesquisa do Ipea sobre assassinatos de mulheres é o Tema do Dia na cobertura de hoje do Grupo de Comunicação O POVO. Confira:
 Para escutar: Na rádio O POVO/CBN (FM 95,5), o tema será discutido no programa Grande Jornal, às 9 horas. Na rádio Globo/O POVO (AM 1010), no programa Manhã da Globo, às 10 horas.
 Para ver - A TV O POVO trará matéria no O POVO Notícias, às 19h, nos canais 48 (UHF e TV Show) e 23 (Net).
 Para ler e opinar: acesse www.facebook.com e www.opovo.com.br

Serviço
Leia o estudo do Ipea
Link: is.gd/RSQ4OyDenuncie a violência contra a mulher
Ligue: 1802º Seminário Internacional de Direito da Mulher
É promovido pela Associação dos Magistrados Brasileiros, o Tribunal de Justiça e a Coordenadoria da Mulher.
Quando: hoje e amanhãOnde: Escola Superior da Magistratura (rua Ramires Maranhão do Vale, 70, Água Fria)
 Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, da Defensoria Pública do Estado
Endereço: rua Francisco Pinto, 363, BenficaAtendimento: de segunda a sexta, das 8h às 17 horas

O que diz a lei

Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006

Artigo 5º Para os efeitos desta lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial;
 Artigo 8º A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais:
 Artigo 23 - Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:

I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;

II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;

III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;

IV - determinar a separação de corpos.

Fonte: O Povo, 26/09/13, disponível em: http://www.opovo.com.br/app/opovo/cotidiano/2013/09/26/noticiasjornalcotidiano,3136302/mesmo-com-lei-violencia-persiste.shtml

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Em tempo:

Eu já trabalhei com temáticas do tipo dentro de estrutura de Estado e posso dizer com propriedade: não basta tratar os direitos humanos com uma política importante; enquanto direitos humanos não forem tratados como política fundamental de Estado o resultado será este aí. Catástrofe. Só lei não dá. Lei ajuda, mas não resolve tudo. E isso vale pra todos os governos, em todos os níveis da federação.

Marcelo Uchôa
 

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Controle social da mídia, já!

É por essas e por outras que somos favoráveis a um controle social da mídia no Brasil. Observem que belo papel presta a Revista Veja para a formação crítica da sociedade brasileira. Comparem as fotos e os títulos das matérias nos demais países.....

A íntegra deste escandaloso absurdo (postaremos apenas para provar a veracidade da denúncia) pode ser lida no seguinte link: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/na-onu-dilma-diz-que-espionagem-e-violacao-de-direitos-humanos-e-cobra-atuacao-da-onu



Blog do Marcelo Uchôa

Íntegra do discurso de Dilma na Assembleia-Geral ONU

"Embaixador John Ashe, Presidente da 68ª Assembleia-Geral das Nações Unidas,
Senhor Ban Ki-moon, Secretário-Geral das Nações Unidas,
Excelentíssimos Senhores Chefes de Estado e de Governo,
Senhoras e Senhores,
 
Permitam-me uma primeira palavra para expressar minha satisfação em ver um ilustre representante de Antígua e Barbuda -país que integra o Caribe tão querido no Brasil e em nossa região- à frente dos trabalhos desta Sessão da Assembleia-Geral.
Conte, Excelência, com o apoio permanente de meu Governo.
Permitam-me também, já no início da minha intervenção, expressar o repúdio do governo e do povo brasileiro ao atentado terrorista ocorrido em Nairóbi. Expresso as nossas condolências e a nossa solidariedade às famílias das vítimas, ao povo e ao governo do Quênia.
O terrorismo, onde quer que ocorra e venha de onde vier, merecerá sempre nossa condenação inequívoca e nossa firme determinação em combatê-lo. Jamais transigiremos com a barbárie.
Senhor Presidente,
Quero trazer à consideração das delegações uma questão a qual atribuo a maior relevância e gravidade. Recentes revelações sobre as atividades de uma rede global de espionagem eletrônica provocaram indignação e repúdio em amplos setores da opinião pública mundial.
No Brasil, a situação foi ainda mais grave, pois aparecemos como alvo dessa intrusão. Dados pessoais de cidadãos foram indiscriminadamente objeto de interceptação.
Informações empresariais -muitas vezes, de alto valor econômico e mesmo estratégico- estiveram na mira da espionagem. Também representações diplomáticas brasileiras, entre elas a Missão Permanente junto às Nações Unidas e a própria Presidência da República tiveram suas comunicações interceptadas.
Imiscuir-se dessa forma na vida de outros países fere o Direito Internacional e afronta os princípios que devem reger as relações entre eles, sobretudo, entre nações amigas.
Jamais pode uma soberania firmar-se em detrimento de outra soberania. Jamais pode o direito à segurança dos cidadãos de um país ser garantido mediante a violação de direitos humanos e civis fundamentais dos cidadãos de outro país.
Pior ainda quando empresas privadas estão sustentando essa espionagem. Não se sustentam argumentos de que a interceptação ilegal de informações e dados destina-se a proteger as nações contra o terrorismo.
O Brasil, senhor presidente, sabe proteger-se. Repudia, combate e não dá abrigo a grupos terroristas. Somos um país democrático, cercado de países democráticos, pacíficos e respeitosos do Direito Internacional. Vivemos em paz com os nossos vizinhos há mais de 140 anos.
Como tantos outros latino-americanos, lutei contra o arbítrio e a censura e não posso deixar de defender de modo intransigente o direito à privacidade dos indivíduos e a soberania de meu país.
Sem ele -direito à privacidade- não há verdadeira liberdade de expressão e opinião e, portanto, não há efetiva democracia. Sem respeito à soberania, não há base para o relacionamento entre as nações.
Estamos, senhor presidente, diante de um caso grave de violação dos direitos humanos e das liberdades civis; da invasão e captura de informações sigilosas relativas as atividades empresariais e, sobretudo, de desrespeito à soberania nacional do meu país.
Fizemos saber ao governo norte-americano nosso protesto, exigindo explicações, desculpas e garantias de que tais procedimentos não se repetirão.
Governos e sociedades amigas, que buscam consolidar uma parceria efetivamente estratégica, como é o nosso caso, não podem permitir que ações ilegais, recorrentes, tenham curso como se fossem normais. Elas são inadmissíveis.
O Brasil, senhor presidente, redobrará os esforços para dotar-se de legislação, tecnologias e mecanismos que nos protejam da interceptação ilegal de comunicações e dados.
Meu governo fará tudo que estiver a seu alcance para defender os direitos humanos de todos os brasileiros e de todos os cidadãos do mundo e proteger os frutos da engenhosidade de nossos trabalhadores e de nossas empresas.
O problema, porém, transcende o relacionamento bilateral de dois países. Afeta a própria comunidade internacional e dela exige resposta. As tecnologias de telecomunicação e informação não podem ser o novo campo de batalha entre os Estados.
Este é o momento de criarmos as condições para evitar que o espaço cibernético seja instrumentalizado como arma de guerra, por meio da espionagem, da sabotagem, dos ataques contra sistemas e infraestrutura de outros países.
A ONU deve desempenhar um papel de liderança no esforço de regular o comportamento dos Estados frente a essas tecnologias e a importância da internet, dessa rede social, para construção da democracia no mundo.
Por essa razão, o Brasil apresentará propostas para o estabelecimento de um marco civil multilateral para a governança e uso da internet e de medidas que garantam uma efetiva proteção dos dados que por ela trafegam.
Precisamos estabelecer para a rede mundial mecanismos multilaterais capazes de garantir princípios como:
1 - Da liberdade de expressão, privacidade do indivíduo e respeito aos direitos humanos.
2 - Da Governança democrática, multilateral e aberta, exercida com transparência, estimulando a criação coletiva e a participação da sociedade, dos governos e do setor privado.
3 - Da universalidade que assegura o desenvolvimento social e humano e a construção de sociedades inclusivas e não discriminatórias.
4 - Da diversidade cultural, sem imposição de crenças, costumes e valores.
5 - Da neutralidade da rede, ao respeitar apenas critérios técnicos e éticos, tornando inadmissível restrições por motivos políticos, comerciais, religiosos ou de qualquer outra natureza.
O aproveitamento do pleno potencial da internet passa, assim, por uma regulação responsável, que garanta ao mesmo tempo liberdade de expressão, segurança e respeito aos direitos humanos.
Senhor presidente, senhoras e senhores,
Não poderia ser mais oportuna a escolha da agenda de desenvolvimento pós-2015 como tema desta Sessão da Assembleia-Geral. O combate à pobreza, à fome e à desigualdade constitui o maior desafio de nosso tempo.
Por isso, adotamos no Brasil um modelo econômico com inclusão social, que se assenta na geração de empregos, no fortalecimento da agricultura familiar, na ampliação do crédito, na valorização do salário e na construção de uma vasta rede de proteção social, particularmente por meio do nosso programa Bolsa Família.
Além das conquistas anteriores, retiramos da extrema pobreza, com o Plano Brasil sem Miséria, 22 milhões de brasileiros, em apenas dois anos. Reduzimos de forma drástica a mortalidade infantil. Relatório recente do UNICEF aponta o Brasil como país que promoveu uma das maiores quedas deste indicador em todo o mundo.
As crianças são prioridade para o Brasil. Isso se traduz no compromisso com a educação. Somos o país que mais aumentou o investimento público no setor educacional, segundo o ultimo relatório da OCDE. Agora vinculamos, por lei, 75% de todos os royalties do petróleo para a educação e 25% para a saúde.
Senhor presidente,
No debate sobre a Agenda de Desenvolvimento pós-2015 devemos ter como eixo os resultados da Rio+20.
O grande passo que demos no Rio de Janeiro foi colocar a pobreza no centro da agenda do desenvolvimento sustentável. A pobreza, senhor presidente, não é um problema exclusivo dos países em desenvolvimento, e a proteção ambiental não é uma meta apenas para quando a pobreza estiver superada.
O sentido da agenda pós-2015 é a construção de um mundo no qual seja possível crescer, incluir, conservar e proteger.
Ao promover, senhor presidente, a ascensão social e superar a extrema pobreza, como estamos fazendo, nós criamos um imenso contingente de cidadãos com melhores condições de vida, maior acesso à informação e mais consciência de seus direitos. Um cidadão com novas esperanças, novos desejos e novas demandas.
As manifestações de junho, em meu país, são parte indissociável do nosso processo de construção da democracia e de mudança social. O meu governo não as reprimiu, pelo contrário, ouviu e compreendeu a voz das ruas. Ouvimos e compreendemos porque nós viemos das ruas.
Nós nos formamos no cotidiano das grandes lutas do Brasil. A rua é o nosso chão, a nossa base. Os manifestantes não pediram a volta ao passado. Os manifestantes pediram sim o avanço para um futuro de mais direitos, mais participação e mais conquistas sociais.
No Brasil, foi nessa década, que houve a maior redução de desigualdade dos últimos 50 anos. Foi esta década que criamos um sistema de proteção social que nos permitiu agora praticamente superar a extrema pobreza.
Sabemos que democracia gera mais desejo de democracia. Inclusão social provoca cobrança de mais inclusão social. Qualidade de vida desperta anseio por mais qualidade de vida. Para nós, todos os avanços conquistados são sempre só um começo.
Nossa estratégia de desenvolvimento exige mais, tal como querem todos os brasileiros e as brasileiras. Por isso, não basta ouvir, é necessário fazer. Transformar essa extraordinária energia das manifestações em realizações para todos.
Por isso, lancei cinco grandes pactos: o pacto pelo Combate à Corrupção e pela Reforma Política; o pacto pela Mobilidade Urbana, pela melhoria do transporte público e por uma reforma urbana; o pacto pela Educação, nosso grande passaporte para o futuro, com o auxílio dos royalties e do fundo social do petróleo; o pacto pela Saúde, o qual prevê o envio de médicos para atender e salvar as vidas dos brasileiros que vivem nos rincões mais remotos e pobres do país; e o pacto pela Responsabilidade Fiscal, para garantir a viabilidade dessa nova etapa.
Senhoras e Senhores,
Passada a fase mais aguda da crise, a situação da economia mundial ainda continua frágil, com níveis de desemprego inaceitáveis. Os dados da OIT indicam a existência de mais de 200 milhões de desempregados em todo o mundo.
Esse fenômeno afeta as populações de países desenvolvidos e em desenvolvimento. Este é o momento adequado para reforçar as tendências de crescimento da economia mundial que estão agora dando sinais de recuperação.
Os países emergentes, sozinhos, não podem garantir a retomada do crescimento global. Mais do que nunca, é preciso uma ação coordenada para reduzir o desemprego e restabelecer o dinamismo do comércio internacional. Estamos todos no mesmo barco.
Meu país está recuperando o crescimento apesar do impacto da crise internacional nos últimos anos.
Contamos com três importantes elementos: i) o compromisso com políticas macroeconômicas sólidas; ii) a manutenção de exitosas políticas sociais inclusivas; iii) e a adoção de medidas para aumentar nossa produtividade e, portanto, a competitividade do país.
Temos compromisso com a estabilidade, com o controle da inflação, com a melhoria da qualidade do gasto público e a manutenção de um bom desempenho fiscal.
Seguimos, senhor presidente, apoiando a reforma do Fundo Monetário Internacional. A governança do fundo deve refletir o peso dos países emergentes e em desenvolvimento na economia mundial. A demora nessa adaptação reduz sua legitimidade e sua eficácia.
Senhoras e senhores, senhor presidente,
O ano de 2015 marcará o 70º aniversário das Nações Unidas e o 10º da Cúpula Mundial de 2005. Será a ocasião para realizar a reforma urgente que pedimos desde aquela cúpula.
Impõe evitar a derrota coletiva que representaria chegar a 2015 sem um Conselho de Segurança capaz de exercer plenamente suas responsabilidades no mundo de hoje. É preocupante a limitada representação do Conselho de Segurança da ONU, face os novos desafios do século XXI.
Exemplos disso são a grande dificuldade de oferecer solução para o conflito sírio e a paralisia no tratamento da questão israelo-palestina. Em importantes temas, a recorrente polarização entre os membros permanentes gera imobilismo perigoso.
Urge dotar o Conselho de vozes ao mesmo tempo independentes e construtivas. Somente a ampliação do número de membros permanentes e não permanentes, e a inclusão de países em desenvolvimento em ambas as categorias, permitirá sanar o atual déficit de representatividade e legitimidade do Conselho.
Senhor presidente,
O Debate Geral oferece a oportunidade para reiterar os princípios fundamentais que orientam a política externa do meu país e nossa posição em temas candentes da realidade e da atualidade internacional.
Guiamo-nos pela defesa de um mundo multilateral, regido pelo Direito Internacional, pela primazia da solução pacífica dos conflitos e pela busca de uma ordem solidária e justa - econômica e socialmente.
A crise na Síria comove e provoca indignação. Dois anos e meio de perdas de vidas e destruição causaram o maior desastre humanitário deste século. O Brasil, que tem na descendência síria um importante componente de nossa nacionalidade, está profundamente envolvido com este drama.
É preciso impedir a morte de inocentes, crianças, homens, mulheres e idosos. É preciso calar a voz das armas --convencionais ou químicas, do governo ou dos rebeldes. Não há saída militar. A única solução é a negociação, o diálogo, o entendimento.
Foi importante a decisão da Síria de aceder à Convenção sobre a Proibição de Armas Químicas e aplicá-la imediatamente. A medida é decisiva para superar o conflito e contribui para um mundo livre dessas armas. Seu uso, reitero, é hediondo e inadmissível em qualquer situação.
Por isso, apoiamos o acordo obtido entre os Estados Unidos e a Rússia para a eliminação das armas químicas sírias. Cabe ao governo sírio cumpri-lo integralmente, de boa-fé e com ânimo cooperativo.
Em qualquer hipótese, repudiamos intervenções unilaterais ao arrepio do Direito Internacional, sem autorização do Conselho de Segurança. Isto só agravaria a instabilidade política da região e aumentaria o sofrimento humano.
Da mesma forma, a paz duradoura entre Israel e Palestina assume nova urgência diante das transformações por que passa o Oriente Médio.
É chegada a hora de se atender às legítimas aspirações palestinas por um Estado independente e soberano.
É também chegada a hora de transformar em realidade o amplo consenso internacional em favor de uma solução de dois Estados.
As atuais tratativas entre israelenses e palestinos devem gerar resultados práticos e significativos na direção de um acordo.
Senhor presidente, senhoras e senhores,
A história do século XX mostra que o abandono do multilateralismo é o prelúdio de guerras, com seu rastro de miséria humana e devastação.
Mostra também que a promoção do multilateralismo rende frutos nos planos ético, político e institucional.
Renovo, assim, o apelo em prol de uma ampla e vigorosa conjunção de vontades políticas que sustente e revigore o sistema multilateral, que tem nas Nações Unidas seu principal pilar.
Em seu nascimento, reuniram-se as esperanças de que a humanidade poderia superar as feridas da Segunda Guerra Mundial.
De que seria possível reconstruir, dos destroços e do morticínio, um mundo novo de liberdade, de solidariedade e prosperidade.
Temos todos a responsabilidade de não deixar morrer essa esperança tão generosa e tão fecunda.
Muito obrigada, senhores e senhoras." 

Fonte: Jornal O Povo, 25/09./13, disponível em: http://www.opovo.com.br/app/politica/2013/09/24/noticiaspoliticas,3135349/leia-na-integra-o-discurso-de-dilma-na-onu.shtml

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Caso de espionagem dos EUA viola direitos humanos, diz Dilma na ONU


Pablo Uchoa


Atualizado em  24 de setembro, 2013 - 11:33 (Brasília) 14:33 GMT




Dilma Rousseff  (Getty Images)
Para Dilma, espionagem realizada pelos EUA não se justifica

A presidente Dilma Rousseff usou nesta terça-feira o palanque privilegiado da Assembleia Geral da ONU para afirmar que a espionagem atribuída aos Estados Unidos, por meio da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), representa uma violação dos direitos humanos e um desrespeito às soberanias nacionais.

Primeira líder a falar no debate geral de chefes de Estado da organização, a presidente disse que "a rede global de espionagem" da NSA provocou "indignação e repúdio" em "amplos setores da opinião pública mundial” e ainda mais no Brasil, onde ela própria, seus ministros e a Petrobras teriam sido alvo das ações.
"Estamos, senhor presidente, diante de um caso grave de violação dos direitos humanos e das liberdades civis", disse Dilma, dirigindo-se ao presidente desta sessão da Assembleia, John Ashe, embaixador de Antígua e Barbuda na ONU. "Da invasão e captura de informações sigilosas relativas a atividades empresariais e, sobretudo, de desrespeito à soberania nacional".

"Jamais pode uma soberania firmar-se em detrimento de outra soberania. Jamais pode o direito à segurança dos cidadãos de um país ser garantido mediante a violação de direitos humanos fundamentais dos cidadãos de outros países", protestou Dilma. "Pior ainda", continuou, quando empresas privadas fazem parte do esquema.

"Não se sustentam os argumentos de que a interceptação ilegal de informações e dados destina-se a proteger as nações contra o terrorismo. O Brasil", disse Dilma, "repudia, combate e não dá abrigo a grupos terroristas".


'Inadmissíveis'


Por tradição, cabe ao mandatário brasileiro abrir os trabalhos da plenária de líderes das Nações Unidas, o principal fórum que reúne os líderes dos 193 países-membro da organização. O tema deste ano era "Agenda de Desenvolvimento Pós-2015: Preparando o cenário".

Dilma Rousseff já tinha avisado que ancoraria o seu discurso na polêmica envolvendo a espionagem americana. Até a Casa Branca já esperava que ela fizesse críticas mais fortes aos EUA, mas ainda havia dúvidas sobre quão duro seria o tom que a presidente adotaria. A versão final do discurso ficou pronta às 4h da manhã, e assessores do Planalto disseram que até no café da manhã a presidente ainda rabiscava mudanças no texto.
Indiretamente, a presidente fez menção à importância do caso na sua decisão de adiar uma visita ao Estado aos EUA em outubro.
"Governos e sociedades amigos, que buscam consolidar uma parceria estratégica, como é o nosso caso, não podem permitir que ações ilegais, recorrentes, tenham curso como se fossem normais. Elas são inadmissíveis."
Segundo documentos secretos da NSA revelados pela imprensa, o governo dos EUA teria interceptado telefonemas e e-mails da presidente e de seus principais assessores, assim como dados sigilosos da Petrobras.

As denúncias provocaram um forte abalo nas relações bilaterais entre Brasil e Estados Unidos, que culminaram com o adiamento de um encontro entre Dilma e o presidente americano, Barack Obama. A reunião estava prevista para ocorrer em outubro, em Washington.

 

Uso e segurança da internet


Como esperado, a presidente manifestou apoio a medidas voltadas para incrementar a segurança dos dados nas comunicações globais e a governança da internet.

Esse tema tem sido alvo de discussões em várias instâncias da ONU. No Conselho dos Direitos Humanos, em Genebra, por exemplo, cerca de 250 entidades assinaram uma carta de princípios internacionais com recomendações para que os governos não façam uso de práticas de vigilância ilícitas e abusivas nas comunicações globais.

A Alta Comissária das Nações Unidas para Direitos Humanos, Navi Pillay, e o relator especial para Liberdade de Expressão da ONU, Frank La Rue, já expressaram preocupação com as implicações das ações da NSA.

"O problema transcende o relacionamento bilateral (entre EUA e Brasil)", colocou Dilma. Ela disse que o Brasil apresentará propostas para criar um marco civil multilateral para garantir a liberdade de expressão na internet, estabelecer uma governança democrática e multilateral da rede e preservar o seu caráter de universidade, diversidade e neutralidade.

"As tecnologias de telecomunicações e informação não podem ser o novo campo de batalha entre os Estados. Este é o momento de criarmos as condições para evitar que o espaço cibernético seja instrumentalizado como arma de guerra, por meio da espionagem, da sabotagem, dos ataques contra sistemas e infraestruturas de outros países", defendeu a presidente.

 

Síria e Brasil


Dilma também falou de outros temas na ONU. Ela defendeu uma solução negociada para a Síria e disse que é uma "derrota coletiva" que a organização cumpra 70 anos, em 2015, "sem um Conselho de Segurança capaz de exercer plenamente suas responsabilidades no mundo de hoje".

Esta "limitada representação", disse Dilma, está relacionada às dificuldades da ONU em oferecer uma solução para o conflito sírio e à "paralisia" no tratamento das negociações de paz entre israelenses e palestinos.

A presidente defendeu ainda reformas no Fundo Monetário Internacional (FMI) para elevar a participação dos países emergentes em decisões que afetam a economia global, que continua "frágil", nas palavras da presidente.

Em outro ponto do discurso, a presidente se referiu aos protestos ocorridos no Brasil em junho, dizendo que, em vez de reprimi-los, o governo "ouviu e compreendeu as vozes das ruas. Porque nós viemos das ruas".

"Os manifestantes não pediram a volta do passado. Pediram um avanço para um futuro com mais direitos, mais conquistas sociais."

"Nossa estratégia de desenvolvimento exige mais, tal como querem todos os brasileiros e as brasileiras", afirmou.

Dilma também destacou conquistas sociais de seu governo, como a redução da desigualdade e a saída de milhões de brasileiros da pobreza.

 

Desenvolvimento sustentável


Ainda nesta terça-feira, a presidente Dilma Rousseff participa de uma sessão de alto nível para encaminhar as resoluções da Rio+20, realizada no ano passado.

A conferência discutiu o modelo de desenvolvimento sustentável que os governos devem buscar a partir de 2015, em substituição às metas básicas de redução da pobreza e elevação de indicadores sociais contidas nos Objetivos do Milênio.

"O grande passo que demos no Rio de Janeiro foi colocar a pobreza no centro da agenda do desenvolvimento sustentável”, disse Dilma. "A pobreza, senhor presidente, não é um problema exclusivo dos países em desenvolvimento, e a proteção ambiental não é uma meta apenas para quando a pobreza estiver superada."

A ONU estabeleceu o Fórum de Alto Nível sobre Desenvolvimento Sustentável, que reúne governos e chefes de Estado. A instância se reunirá a cada quatro anos na Assembleia Geral da ONU, com reuniões em nível ministerial uma vez por ano. Suas deliberações se traduzirão em declarações governamentais acordadas pelas partes.

A partir de 2016, a instância acompanhará a implementação das metas de desenvolvimento sustentável pelos países da ONU.

Fonte: BBC Brasil, 24/09/13, disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/09/130924_dilma_assembleia_onu_lgb.shtml

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Comissão concede anistia a Honestino Guimarães e recomenda mudança na certidão de óbito

Luciano Nascimento Repórter da Agência Brasil

Brasília - A Comissão de Anistia concedeu hoje (20) a declaração de anistiado político post mortem ao ex-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) Honestino Guimarães. Durante a solenidade, na Universidade de Brasília (UnB), o secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abrão, leu o pedido de desculpas oficial do governo brasileiro e declarou a anistia do líder estudantil.
 
A comissão também aprovou parecer em que recomenda a alteração da certidão de óbito do líder estudantil. A comissão aprovou que, na nova certidão, conste que a morte foi causada por "atos violentos praticados pelo Estado". A certidão atual, sem a causa da morte, foi emitida em 1996, após o reconhecimento oficial de desaparecido político. A medida atendeu parcialmente ao pedido da família que solicitou à comissão que constasse como causa do óbito o sequestro e tortura praticados pelo Estado brasileiro.
"Homenagear Honestino Guimarães é uma forma de, emblematicamente, oficializar o pedido de desculpa do Estado a sua família, gesto que o país, até o momento, não havia feito", disse, antes da cerimônia, o secretário Paulo Abrão. Parentes, amigos e ex-companheiros de movimento estudantil de Honestino participaram da solenidade, ao lado de professores e alunos da universidade.

Honestino era estudante de geologia da UnB e participante do movimento estudantil. Foi preso diversas vezes por causa do engajamento político. Em 1968, foi desligado da universidade como punição por ter liderado movimento pela expulsão de um falso professor, informante da ditadura. Após a edição do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), que suspendeu várias garantias constitucionais, Honestino passou a viver na clandestinidade, com a esposa, em São Paulo. Em 1971, foi eleito presidente da UNE, e lutou contra a ditadura militar. Foi preso no Rio por agentes do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), em outubro de 1973, quando desapareceu. Tinha 26 anos.

Durante o julgamento, o relator do caso e professor da UnB, Cristiano Paixão, reiterou que o crime cometido pelo Estado de ocultação de cadáver não prescreve, e por isso recomendou a remessa de cópia do processo de anistia de Honestino ao Ministério Público Federal (MPF) para o órgão avaliar se cabe abertura de processo "diante de notícia de crime permanente de ocultação de cadáver". Paixão ponderou que a Lei de Anistia não tem vigência em crimes de tortura e de ocultação de cadáver.
 
Antes do julgamento, a filha de Honestino, Juliana Guimarães disse que a homenagem ao pai emociona, mas ressaltou que isso não basta. "Estamos atrás da verdade. Já se passaram 40 anos, e eu ainda não sei onde está meu pai. Não sabemos o que aconteceu no dia 10 de outubro, quando ele desapareceu. O ato é um pedacinho, temos muita coisa para buscar, [para ir] atrás da memória do que aconteceu. É uma coisa de respeito com ele e com todo mundo [que desapareceu]", disse Juliana, que tinha 3 anos à época do desaparecimento do pai.

Com mais de dez anos, a Comissão de Anistia busca reparação aos perseguidos políticos durante o regime militar no Brasil. Conforme a lei, o presidente da comissão oficializa o pedido de desculpas do Estado pelos erros cometidos.

Edição: Carolina Pimentel
Todo o conteúdo deste site está publicado sob a Licença Creative Commons Atribuição 3.0 Brasil. Para reproduzir o material é necessário apenas dar crédito à Agência Brasil

Fonte: Agência Brasil, 20/09/13, disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-09-20/comissao-concede-anistia-honestino-guimaraes-e-recomenda-mudanca-na-certidao-de-obito

Luiz Moreira: STF legitimou todas as ditaduras brasileiras



publicado em 20 de setembro de 2013



O ex-procurador-geral da República, Roberto Gurgel, fez de tudo para impedir a aprovação de Luiz Moreira (de óculos) como Conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Ao lado dele, o Corregedor Nacional do Ministério Público

Alessandro Tramujas
por Conceição Lemes

Luiz Moreira é professor de Direito Constitucional e  Conselheiro Nacional do Ministério Público (CNMP), indicado pela Câmara dos Deputados.

Assim como os réus da Ação Penal 470,  mais uma vítima do escrachado partidarismo político da Procuradoria-Geral da República (PGR) nos últimos oito anos.

Em 2012, teve o seu nome aprovado por todos os líderes da Câmara dos Deputados para um segundo mandato como conselheiro do CNMP.

O então procurador-geral da República, Roberto Gurgel, fez de tudo para impedir a sua aprovação. Até telefonar para parlamentares.

Seus “delitos”: criticar os desmandos corporativos do Ministério Público e cobrar dos seus integrantes o mínimo de isenção pública.

Depois de seis meses de absurda campanha difamatória e perseguição implacável dentro do próprio CNMP, a verdade prevaleceu, Moreira ganhou.

Será isso ainda possível para alguns réus da AP 470, o chamado mensalão?

“Nem o Ministério Público Federal nem o Supremo Tribunal conseguiram provar as acusações”, afirma o professor Luiz Moreira. ”Foi um julgamento viciado, absolutamente de exceção.”

“O método de trabalho proposto pelo ministro-relator trouxe claro prejuízo aos direitos fundamentais do acusados, gerando consequências danosas às liberdades no Brasil e ao primado dos direitos fundamentais”, denuncia. “Além disso, ao definir as penas, os magistrados se pautaram por critérios ideológicos e não por razões jurídicas. Assim, em vez de avançarmos na garantia dos direitos fundamentais, regredimos com o julgamento da Ação Penal 470.”

“É importante que se tenha a clareza de que o Supremo Tribunal Federal legitimou todas as ditaduras brasileiras.  Seja a ditadura Vargas, seja a ditadura militar”, observa. ”Tanto que todos os ministros contrários à ditadura, como o ministro Evandro Lins e Silva, foram aposentados compulsoriamente. E os demais ministros, em vez de serem solidários a eles, foram solidários ao regime militar.”

Segue a nossa entrevista na íntegra.  Conversei com o professor Luiz Moreira antes e depois do voto do ministro Celso de Mello sobre os embargos infringentes.

Viomundo – Em seu voto sobre os embargos infringentes, o ministro Celso de Mello disse que “os julgamentos do Supremo Tribunal Federal, para que sejam imparciais, isentos e independentes, não podem expor-se a pressões externas, como aquelas resultantes do clamor popular e das pressões das multidões, sob pena de completa subversão do regime constitucional dos direitos e das garantias fundamentais”. Isso sinaliza mudança no julgamento do mensalão?
Luiz Moreira – Deveria significar, mas receio que não vá acontecer. Os equívocos cometidos no julgamento da Ação Penal 470 são tantos que subverteram o papel desempenhado pelo Judiciário no Ocidente.

Viomundo – Também em seu voto Celso de Mello explicou de modo cristalino, sem deixar qualquer dúvida, a legalidade dos votos infringentes. Por que Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Luiz Fux e Cármen Lúcia fizeram parecer que era uma questão extremamente complexa?
Luiz Moreira — É uma questão tranquila, pacífica, como bem mostrou o ministro Celso de Mello. Só se tornou controversa porque o julgamento da Ação Penal 470 é absolutamente midiático.
A tramitação de matérias penais que se iniciam nos Tribunais Superiores é regida pela lei nº 8038, de 1990. Ela institui normas procedimentais para processos perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal.
O que a lei 8098/90 diz no seu artigo 12?
Finda a instrução, o Tribunal procederá ao julgamento, na forma determinada pelo regimento interno (Lei nº 8.038, de 28 de maio de 1990 ). Ou seja, a lei 8038/90 confere aos tribunais superiores o poder de regulamentação.
Portanto, em ações originárias nos tribunais superiores, a admissão dos embargos será regida pelo regimento do tribunal. Ela remete a cada tribunal a responsabilidade de resolver a questão.
E o que diz o regimento do Supremo Tribunal Federal?
No seu artigo 333, ele diz que cabem embargos infringentes em ações penais, desde que existam quatro votos pela absolvição. Então, essa matéria do ponto de vista jurídico é pacificada.
Além disso, em 1998, apreciando projeto enviado pelo governo FHC, que revogava esse tipo de recurso, a Câmara dos Deputados entendeu que os embargos infringentes deveriam ser mantidos, para preservar os direitos fundamentais.
Qual é a pressuposição do ordenamento jurídico no Brasil? É que o Supremo Tribunal Federal é o tribunal que garante os direitos fundamentais.
E garantir os direitos fundamentais – diz o regimento do Supremo — significa que, se em uma ação penal houver quatro votos pela absolvição, esses réus fazem jus a um novo julgamento. Isso ocorre para que se forme uma maioria consistente, de modo que o Tribunal se posicione inequivocamente pela condenação dos réus.

Viomundo – No Direito, existe um princípio básico: “o réu é inocente até que se prove o contrário”. No julgamento da AP 470, todos os réus já foram considerados culpados de cara, sem provas. E, aí?
Luiz Moreira — Na estrutura ocidental, nós temos as instituições majoritárias, o poder político. São essas instituições que aferem a vontade da população. Os desejos da população são materializados pelas políticas públicas elaboradas pelo Executivo e pelas leis do Legislativo.
A função mais importante do Judiciário não é decidir conforme a opinião publicada e as pressões dos lobbies. O papel do Judiciário é ter uma função garantista, decidindo à revelia das pressões.
Qual o papel do Judiciário quando analisa ações penais? No mínimo, afere, exige comprovação das teses levantadas pela acusação, se posicionando ao lado dos acusados.

Viomundo – Em que sentido?
Luiz Moreira – Baseado no primado da presunção da inocência, ou seja, todo réu é considerado inocente até que o acusador demonstre o contrário.
Por isso, manda a tradição humanista do ocidente que se proceda à absolvição dos réus se houver dúvidas sobre a sua culpabilidade, se não estiverem cabalmente comprovadas as acusações.
Agora o que é estranho, muito questionável nesse julgamento, é que o Supremo Tribunal ter assumido posição idêntica à da acusação. Ou seja, o Ministério Público exigir que os réus comprovassem a sua inocência, quando cabe ao acusador, no caso o próprio Ministério Público, comprovar as acusações que fez.

Viomundo – Mas nem o Ministério Público nem o STF comprovaram as acusações.
Luiz Moreira – Isso mesmo. É que o STF transformou a Ação Penal 470 num silogismo, devido ao método que utilizou no julgamento.
O método utilizado gera uma vinculação, uma ligação do antecedente ao consequente.  Assim, se você decidiu anteriormente de um modo, essa decisão obriga a uma determinada conclusão.
Na Ação Penal 470, a maioria dos ministros do STF se utilizou de estrutura silogística num julgamento em que a estrutura é radicalmente diferente de uma estrutura lógica, porque a estrutura lógica leva a conclusões.
Ocorre que numa ação penal essas conclusões só podem ser tomadas se se comprovarem as acusações. Portanto,  é questão de fato não sujeita a exercícios argumentativos, como fez o STF.
Diferentemente de um silogismo, de uma conclusão lógica, em matéria penal as dúvidas não são resolvidas argumentativamente. E as conclusões só podem ser tomadas, não por dedução, como ocorre nos livros de ficção, mas a partir das provas produzidas.  O que não aconteceu nesse julgamento, que foi absolutamente de exceção.
Outro exemplo. O ministro Lewandowski, quando se iniciou a fase dos embargos declaratórios, demonstrou de forma muito clara, muito precisa, que as penas conferidas aos réus extrapolam o que usualmente se faz no Supremo.
São penas que foram estabelecidas com o claro propósito de se evitar a prescrição. Então, as penas não foram estabelecidas segundo critérios jurídicos. Mas se chegaram a elas a partir de uma postura ideológica pela condenação de A ou de B. E isso torna o julgamento viciado.

Viomundo – No que exatamente o julgamento da AP 470 difere de outros julgamentos no STF?
Luiz Moreira — Primeiro, pelo método. O método trouxe claro prejuízo aos direitos fundamentais do acusados, gerando consequências danosas às liberdades no Brasil e ao primado dos direitos fundamentais.
Segundo, esse julgamento estabeleceu que, ao definir a pena, os magistrados se pautaram por critérios ideológicos e não por razões jurídicas.
Tanto assim o é que, como demonstrou o ministro Lewandowski, houve aumento de 60% nas penas em relação ao que usualmente se faz no Supremo – tanto nas câmaras quanto no plenário.
Tanto que o ministro Teori Zavascki disse que as penas da Ação Penal 470 são claramente exacerbadas, ou seja, aos réus dessa ação se aplicaram penas mais severas do que em outras ações penais.
E é o que ocorreu na questão dos embargos infringentes. O regimento do Supremo é de 1980.  E a lei 8038/90, de dez anos depois.  E o Supremo Tribunal Federal já fez 48 emendas no seu regimento.
Em duas emendas, a 36 e a47, tratou especificamente dos embargos infringentes. Em ambas o STF não apenas manteve os embargos, como especificou melhor em que condições eles cabem.
A emenda regimental 47, a última que tratou dos embargos infringentes, é de fevereiro de 2012. Já eram ministros do Supremo, Celso Mello, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Joaquim Barbosa, Carmen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Dias Tofolli.
E esses ministros sem nenhum problema, sem nenhum questionamento, validaram a existência dos embargos infringentes. Por que só agora houve questionamento aos embargos infringentes? 

Viomundo — Eu imaginava que para se condenar uma pessoa eram necessárias provas. Só que quanto mais eu faço reportagens sobre a AP 470, como o caso do Fundo de Incentivo Visanet,  constato que não foi assim. Em saúde/medicina, que é principalmente a minha área, você tem de se pautar pelas evidências científicas naquele momento. Guardadas as proporções, eu supunha que no Direito era mesma coisa…
Luís Moreira — Era, era.

Viomundo — Não é mais no Direito ou na AP 470?
Luiz Moreira – Na AP 470. O problemático da denúncia da Procuradoria Geral da República ao Supremo Federal é que ela é uma peça fictícia . Ela assume ares de texto literário. Ela vai gerando dúvidas, colocando questões que são verossimilhantes. Parte da suposição de que aquilo é provável que aconteça, que tenha acontecido.

Viomundo – Verossimilhança, segundo o Dicionário do Houaiss, é “ligação, nexo, harmonia entre os fatos, ideias, etc, numa obra literária, ainda que os elementos imaginosos ou fantasiosos sejam determinantes no texto”.
Foi assim que foi feita a denúncia do ex-procurador-geral Antônio Fernando de Souza e aceita pelo ministro Joaquim Barbosa?
Luiz Moreira – Isso mesmo! A denúncia da Procuradoria Geral da República ao Supremo Tribunal se utiliza de um método literário. Um argumento meramente ficcional.
A estrutura da argumentação utilizada é do seguinte tipo: é plausível que isso tenha acontecido?; é plausível que as pessoas não tenham conhecimento disso ou daquilo?
Como consequência vai se gerando uma série de dúvidas em torno daquele assunto conforme o argumento verossimilhante. É possível que o ministro da Casa Civil soubesse. Não é possível que fulano não tenha tomado conhecimento. Não é possível que isso não tenha ocorrido.
Então a argumentação é toda baseada nisso. Como se fosse uma peça de ficção literária.
Esse estilo não encontra guarida numa ação penal. Esse tipo argumentação é plausível na esfera cível, quando vai se designar os tipos de culpa, para que fique caracterizada a responsabilização civil, isto é, por negligência, imperícia, imprudência.
Em matéria penal não se discute culpa. Discute-se dolo. A diferença técnica é essa.
Para se exigir condenar José Dirceu, por exemplo, não há que se verificar se é possível que ele soubesse. Exigem-se provas que demonstrem cabalmente a participação dele no crime apontado. Para ele e para todos os demais réus da AP 470.
Em matéria penal é preciso demonstrar cabalmente todas as acusações. Mas, como a AP 470 foi feita como se fosse uma peça literária, levou o julgamento ao vício, isto é, o julgamento é nulo.

Viomundo – Por que o julgamento é viciado?
Luiz Moreira – Primeiro: pela insuficiência na atuação do Ministério Público Federal. O Ministério Público Federal não comprovou as acusações que fez.
Segundo: porque o Judiciário não pode se pautar pelo mesmo método do Ministério Público, que é o acusador.Na tradição jurídica ocidental, se exige a estrita comprovação do alegado. A ficção é apenas literária, não tem valor jurídico.

Viomundo – Mas o ministro-relator assumiu essa peça de ficção literária como se fosse verdadeira?
Luiz Moreira – Assumiu. E o método de trabalho proposto por ele é um método que favorece a acusação em detrimento da defesa.

Viomundo — Quer dizer que o Supremo acabou sendo conivente com esse processo todo?
Luiz Moreira — O Supremo Federal para mim hoje tem dois grupos, duas frentes.
Uma frente conservadora liderada por Joaquim Barbosa, na qual se inserem Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Luiz Fux.
E uma frente liderada pelo ministro Lewandowski, que é uma frente garantista, que imagina o Supremo como o tribunal dos direitos e das garantias constitucionais.
O grande papel desempenhado pelo ministro Lewandowski, na Ação Penal 470 — e que, na minha opinião, ainda não foi devidamente valorizado – é o de defesa dos direitos do cidadão ante à ação do Estado.

Viomundo – Pelo contrário. O ministro Lewandowski foi achincalhado pelos colegas e pela mídia…
Luiz Moreira – Ele foi achincalhado exatamente por defender os direitos fundamentais de quem quer que seja.
Em qualquer país civilizado, o Judiciário não se confunde com o Ministério Público, não se confunde com a Polícia.  E também não se confunde com as estruturas majoritárias, que decidem conforme a pressão ou os interesses da maioria.
O Supremo Tribunal decide pelos direitos fundamentais.  Então há de haver por parte do Judiciário um afastamento da pressão popular.  Do linchamento, portanto.
E o ministro Lewandowski assumiu para ele o papel de conferir ao Supremo Tribunal Federal a missão de se desincumbir de uma tarefa judiciária estrita, que é julgar conforme as provas. O ministro Lewandowski é o juiz dos direitos fundamentais.

Viomundo –Em alguns momentos desse julgamento eu me lembrei da ditadura civil-militar no Brasil…
Luiz Moreira – Ditadura que foi convalidada pelo Supremo Tribunal Federal. A tradição libertária do Supremo é muito recente. É importante que se tenha a clareza de que o Supremo Tribunal Federal legitimou todas as ditaduras brasileiras.  Seja a ditadura Vargas, seja a ditadura militar.
O Supremo sempre foi vacilante no que diz respeito à tutela dos direitos fundamentais, em garantir os direitos humanos.
Você vê que na ditadura militar os habeas corpus eram negados. E o Supremo dava feição jurídica ao que a ditadura militar fazia em termos de violação aos direitos. Tanto que a Olga Benário, por exemplo, foi deportada com ordem judicial.

Viomundo – Eu cheguei a acompanhar alguns depoimentos na Auditoria Militar, na Brigadeiro Luís Antônio. A defesa não tinha direito a nada, os presos muito menos ainda. O pacote já vinha pronto, e acabou. Nesse sentido, em vez de avançar, a gente regrediu com a AP 470.
Luiz Moreira – Você está certa. Regredimos, sim.
Hoje, a grande disputa no Supremo é entre uma frente defensora dos direitos fundamentais e uma frente conservadora, que se baseia no discurso da lei e da ordem, na tradição do Bush, por exemplo.Uma tradição que o tribunal não se esqueceu da época da ditadura.
O ministro Lewandowski, com a sua postura, inaugura essa fase de disputa. Ele fixa a exigência de observância dos preceitos constitucionais.
A Constituição de 1988 inaugura no Brasil a era dos direitos fundamentais. Defesa dos direitos fundamentais que o Supremo Tribunal Federal sempre se negou a fazer. Todos os ministros contrários à ditadura, como o ministro Evandro Lins e Silva, foram aposentados compulsoriamente. E os demais ministros, em vez de serem solidários a eles, foram solidários ao regime militar.
Por isso, insisto: o papel do Lewandowski é histórico, porque ele estabelece que o papel do STF é garantista, como tribunal que garante os direitos fundamentais.
Neste julgamento, o papel do ministro Lewandowski transcende os limites da Ação Penal 470, estabelecendo uma frente de direitos.  E as nomeações do ministro Teori Zavascki, que é um ministro altamente técnico, e do ministro Roberto Barroso, fortalecem a tese do tribunal como tribunal dos direitos fundamentais.

Viomundo — E agora, professor? 
Luís Moreira – O nosso sistema jurídico está precisando de uma nova engenharia constitucional. Não é possível numa democracia que haja sobreposição do Judiciário sobre os poderes políticos – Legislativo e Executivo.
É preciso que nós achemos uma saída democrática para o impasse institucional em que chegamos.  Nós estamos vivendo num impasse. A supremacia judicial não se coaduna com o regime democrático.
Então, precisamos de uma saída. Dois bons modelos são o inglês e o canadense. Lá, em certos tipos de manifestações judiciais – por exemplo, quando avançam sobre políticas públicas emanadas do executivo e algumas normas legislativas — a discussão volta para o parlamento e a discussão é feita pelo senado.
Do jeito que está não dá para continuar. Nós vamos gerando impasses, próprios do mundo moderno, que não são passíveis de resolução pelo Direito. Problemas que só encontram solução com a política.

Fonte: Viomundo, 20/09/13, disponível em: http://www.viomundo.com.br/entrevistas/luiz-mopreira.html