Por Leonardo Léllis
"Um
dos maiores juristas do Brasil." Essa é a definição mais comum de se
encontrar em menções a José Afonso da Silva. Seja qual for a filiação
teórica, operadores do Direito reverenciam a obra do jurista mineiro de
88 anos, nascido em Pompéu. Não por acaso. Formulador de influente parte
da doutrina sobre Direito Constitucional no país, ele testemunhou e
atuou no processo que culminou com a promulgação da Constituição em
1988, que comemora um quarto de século.
Ao lado de representantes
de diferentes áreas do conhecimento e setores da sociedade, José Afonso
da Silva fez parte do time de notáveis na Comissão Afonso Arinos que,
entre 1985 e 1986, elaborou o anteprojeto de Constituição. O texto
acabou não sendo enviado pelo presidente Sarney à Assembleia Nacional
Constituinte, instalada em 1987, mas o trabalho não foi em vão e acabou
sendo aproveitado conforme relata. "Ele não tinha como ser ignorado",
relembra. Seu trabalho prosseguiu na assembleia, dessa vez como assessor
do então senador pelo PMDB Mário Covas. Principal teórico e formulador
dos Direitos Sociais garantidos pela Constituição, José Afonso da Silva
pode ser considerado um constituinte de fato.
Tal qual no texto
constitucional, não se separa a dimensão política da interpretação
teórica que o professor aposentado da Universidade de São Paulo faz do
processo Constituinte e de como ele se desdobrou. "O atual sistema
eleitoral prejudica a governabilidade", avalia, além de apontar os
defeitos do sistema judiciário que perduraram com a Constituição. Apesar
dos novos direitos que foram garantidos, o "Poder Judiciário ficou
praticamente intacto", diz.
Crítico do conservadorismo, reconhece o
caráter progressista que o texto final da Constituição assumiu e está
atento às tentativas de se reduzir os direitos sociais que marcam a
Constituição. Entretanto, o jurista não se aflige com a falta de
regulamentação dos vários dispositivos constitucionais — "não existe
democracia acabada" — nem acha que a Carta perdeu sua essência — "os
direitos fundamentais constituem um núcleo importante na Constituição. É
aí que está a vantagem".
José Afonso da Silva trabalhou em roça
de milho, feijão e arroz, foi padeiro, garimpeiro de cristal e alfaiate.
Em 1947, mudou-se aos 22 anos para São Paulo, onde concluiu o curso
Madureza, uma espécie de supletivo à época. Aos 32, formou-se na
Faculdade de Direito da USP, onde foi professor titular e livre-docente
em Direito do Estado, Direito Financeiro e Processo Civil. Também foi
livre-docente em Direito Constitucional da Universidade Federal de Minas
Gerais. No poder público, foi procurador do estado de São Paulo, chefe
de gabinete da Secretaria da Justiça do estado, secretário de negócios
jurídicos da capital e secretário da Segurança Pública.
Hoje aposentado, já não advoga ou dá parecer. Se dedica a manter sua obra atualizada, da qual se destacam Curso de Direito Constitucional Positivo, que está em sua 36ª edição, e Aplicabilidade das Normas Constitucionais, esta na 8ª edição. Foi em seu escritório, em São Paulo, que José Afonso da Silva recebeu a reportagem da ConJur
para dois encontros nos dias 2 e 3 de outubro — no dia 1º, havia sido
homenageado pela Ordem dos Advogados do Brasil por sua participação na
elaboração do texto constitucional. Na conversa, o jurista relembrou
momentos marcantes da Comissão Afonso Arinos e da Constituinte, avaliou o
Judiciário brasileiro e fez um balanço desses 25 anos.
Leia os principais trechos da entrevista:
ConJur
— O senhor participou da Comissão Afonso Arinos, que elaborou um
projeto de Constituição e acabou não sendo enviado pelo então presidente
Sarney à Assembleia Constituinte. O que aconteceu?
José Afonso da Silva — Ele não mandou o
projeto da Afonso Arinos para a Constituinte porque era parlamentarista e
socialmente avançado. Deu a desculpa de que não quis interferir, mas
foi por isso que ele não mandou.
ConJur — Houve frustração pelo fato de o texto não ter sido enviado ou se sabia que aquele texto não tinha como ser ignorado?
José Afonso da Silva — Não tinha como ser
ignorado, ele foi muito debatido. Ali não eram só juristas. Tinha muita
gente de outras áreas do conhecimento. Como o presidente José Sarney não
mandou o projeto à Assembleia, mas mandou publicar no Diário Oficial,
os constituintes pegaram aquilo e começaram a tirar partes e
apresentar. Então houve uma influência muito grande em praticamente
tudo.
ConJur — Qual foi sua importância?
José Afonso da Silva — Se não houvesse a
comissão Afonso Arinos talvez não teria havido a Constituinte. Foi só
naquele momento que se discutiu Constituição e Constituinte, com muita
repercussão na imprensa. A comissão Afonso Arinos acabou servindo de
modelo para a estrutura da Constituinte.
ConJur — Pode citar exemplos dessa influência?José Afonso da Silva — Um tema muito debatido
atualmente é o da união estável. Surgiu na Afonso Arinos por proposta de
um padre que participava da comissão. Nós estávamos procurando um meio
de amparar a mulher que vivia amasiada há muitos anos com alguém e
quando esse alguém morresse ela acabava ficando desamparada. A união
estável surgiu exatamente por isso: para amparar a mulher que vivia
nessa situação não casada, mas vivendo em uma família de fato. Nós
estávamos debatendo aí o padre falou ‘por que a gente não põe união
estável?’. Ele se chamava Fernando Ávila, era da corrente progressista
da igreja. O controle do capital estrangeiro, por exemplo, nasceu na
comissão por proposta do Barbosa Lima Sobrinho. Isso foi introduzido na
Constituição, mas depois veio a Emenda 6, de agosto de 1995, e tirou. O
Habeas Data foi proposto por mim e também foi para a Constituição.
ConJur — E teve alguma coisa que não foi aproveitada?
José Afonso da Silva — A Constituição da
Comissão Afonso Arinos era parlamentarista e isso não foi aproveitado. A
proposta prosseguiu até um certo ponto na Constituinte e depois caiu
com a pressão do Sarney, oferecendo vantagens, e de outros
presidencialistas. Você tinha também um sistema eleitoral misto,
aproximadamente um tipo alemão, e não foi aproveitado. Se adotou na
Constituição um sistema puramente proporcional. Em geral, a organização
dos direitos fundamentais no anteprojeto da comissão Afonso Arinos era
melhor, mas a Constituição ampliou.
ConJur — Como eram os trabalhos na Constituinte? Havia diálogo entre as comissões?
José Afonso da Silva — Não tinha muito porque
conversar. Cada uma tocava o seu problema e a conversa seria feita na
comissão de sistematização. Aí é que surgiu um problema mais delicado.
Enquanto havia as subcomissões e as comissões, todos os constituintes
estavam trabalhando. Quando foi para a comissão de sistematização havia
um limite de membros. Ela não comportava todo mundo e a maioria dos
constituintes ficou sem ter o que fazer. Não votavam, não discutiam e
aquilo ficou reduzido a pouco mais de 100 membros. Então começou a haver
reuniões paralelas. Foi também a partir disso que surgiu o Centrão. Os
constituintes ficaram um pouco sem ter o que fazer, então começaram a se
reunir, a reclamar e formaram grupos paralelos e daí acabaram... no
Centrão.
ConJur — Como se deu isso?
José Afonso da Silva — Quando estava na
comissão de sistematização, os mais conservadores perceberam que, se
mantivessem as coisas andando como estavam, não teriam condições de
implementar suas ideias e daí geraram o Centrão. O próprio PMDB, que era
liderado pelo Mário Covas, se dividiu. Boa parte passou a não atender a
liderança e se uniu às lideranças do Centrão. Os outros partidos de
esquerda se uniram ao Covas.
ConJur — Ficou tudo fragmentado.
José Afonso da Silva — Nenhum deles tinha
condições de obter maioria. Mesmo o Centrão não conseguia reunir sua
maioria para aprovar as coisas como eles desejavam, aí se começou a
fazer negociação. Quando não chegavam a um consenso, a proposta ia para o
voto do plenário e ganhava quem tivesse maioria naquela oportunidade.
ConJur — Qual o efeito disso tudo no texto final?
José Afonso da Silva — Foi um fenômeno curioso
porque a maioria conservadora acabou produzindo uma Constituição
razoavelmente progressista. Isso se deve à atuação do senador Mário
Covas, que era o líder do PMDB, que tinha maioria absoluta da Assembleia
Constituinte. Em cada subcomissão, ele apresentou relatores ou
presidentes que tivessem uma orientação mais progressista e montou um
xadrez de tal ordem que, apesar de a maioria da Assembleia ser
conservadora, conseguiu decisões mais progressistas.
ConJur — O senhor se recorda de algum ponto que foi para o voto e acabou vencendo a pauta mais conservadora?
José Afonso da Silva — A reforma agrária foi
um deles. Houve algumas concessões, mas os conservadores acabaram
introduzindo elementos que asseguravam mais os interesses deles. Por
incrível que pareça, o Estatuto da Terra era mais avançado do que o que
ficou na Constituição.
ConJur — O senhor se candidatou a deputado constituinte, mas não se elegeu. O que motivou o senhor a se candidatar?
José Afonso da Silva — Eu vinha trabalhando
com Direito Constitucional, especialmente em uma visão voltada para os
direitos fundamentais. Senti-me na obrigação de tentar participar. É
claro que eu não tinha condições de ser eleito, porque eu não tinha
dinheiro. Um grande empresário me ofereceu dinheiro e eu recusei. Ele
disse: ‘Você não fica devendo nada’. ‘Não, eu fico. Se você me der o
dinheiro, um dia eu estou lá, você vai precisar de alguma coisa e eu vou
ter problemas. Então para quê?’. Até costumo dizer que eu tive
praticamente a mesma votação do Mário Covas, só que a dele foi
multiplicada por mil. Mário Covas teve 7,5 milhões e eu tive 7,5 mil.
ConJur — O
senhor acabou participando como assessor do Mário Covas. Conseguiu dar
as mesmas contribuições que o senhor pretendia como deputado?
José Afonso da Silva — Como deputado, eu teria
muito mais possibilidade de contribuir. Como assessor eu não podia me
intrometer nas coisas, ficava mais dependente de indagações. Muitas
vezes eu senti não ser parlamentar para interferir nas discussões e
votações de temas que me pareciam com encaminhamento adequado.
ConJur — O senhor se ressente de algum ponto que tenha entrado na Constituição, mas não da forma que o senhor gostaria?
José Afonso da Silva — Em geral não, porque a
parte que mais me interessava era a parte dos direitos fundamentais e
essa foi bem implementada. Eu tinha uma visão diferente da organização
do poder. Eu propunha um Poder Executivo menos personalista, que eu
chamava de Poder Executivo de gabinete. Isso não passou, era difícil de
passar. Entre ter um presidencialismo hegemônico — como nós temos,
chamado hoje presidencialismo de coalizão — eu preferia o
parlamentarismo na forma que estava sendo previsto na comissão Afonso
Arinos — e chegou até a comissão de sistematização, na Constituinte.
ConJur — Como era sua proposta?
José Afonso da Silva — Haveria o presidente da
República e também um conselho de ministros com competência própria.
Embora os ministros fossem de confiança do presidente, o conselho seria
independente para o exercício de sua competência. Isso quebraria um
pouco a hegemonia personalista do presidencialismo.
ConJur — E qual é o problema desse presidencialismo de coalizão?
José Afonso da Silva — O sistema partidário do
Brasil é muito fragmentado e indisciplinado. Na maior parte das vezes, o
presidente tem que fazer negociações individuais e muitas concessões,
que levam à corrupção. No Brasil, ou na América Latina em geral, tem que
se fazer coalizão porque o partido do presidente nunca é capaz de fazer
a maioria e as negociações muitas vezes não são institucionais.
ConJur — E a Constituição legitima isso?
José Afonso da Silva — Como ela permite a
criação de muitos partidos, de certo modo ela facilita muito. É por isso
que está se buscando uma reforma partidária que tente reorganizar isso.
O sistema favorece a mediocridade, a formação de políticos não muito
comprometidos com o interesse público. Eles não votam uma reforma
política que coíba essas práticas porque será cortar na própria carne.
ConJur
— Concorda com quem diz que a Constituição ficou sendo híbrida por
adotar o presidencialismo em cima de um texto parlamentarista?
José Afonso da Silva — Não. Só a medida
provisória, que seria um instituto mais adequado para o sistema
parlamentarista, mas de resto não tem nada de híbrido. Pode-se até achar
que a estrutura de poder ficou mal organizada talvez porque, na última
hora, sob pressão do Sarney, puseram as normas do presidencialismo no
lugar onde estavam normas do parlamentarismo.
ConJur — E ela deixaria o país ingovernável como ele chegou a afirmar?
José Afonso da Silva — A gente está vendo que
não prejudicou nada. O que prejudica a governabilidade é exatamente o
atual sistema eleitoral de representação proporcional e a fragmentação
partidária. A multiplicidade de partidos é que gera a necessidade de
coligações de vários partidos para formar a base governista. Essa
indisciplina partidária que faz com que cada um faça o que quer sem
muito compromisso com a orientação partidária... Isso é que realmente
complica a governabilidade.
ConJur — A Constituição carrega traumas do período militar?
José Afonso da Silva — Em alguns aspectos
carrega, embora menos do que a Constituição de 1946, em grande parte
aprovada contra a ditadura do Getúlio Vargas. Por isso a doutrina fala
que ela nasceu de costas para o futuro porque estava preocupada com o
passado. A Constituição de 1988 se voltou mais para o futuro. Mas há um
dispositivo (artigo 5º, inciso XLIV), por exemplo, que considera
crime inafiançável a ação de grupos armados contra a ordem
constitucional. Há também a norma sobre a cassação do mandato,
exatamente para não ocorrer como no regime militar, em que o presidente
ou outro poder cassava o parlamentar. Agora só a Casa respectiva pode
cassar o mandato. Esse talvez seja o tema mais diretamente contrário ao
que aconteceu na ditadura.
ConJur — Diante dessa perspectiva de agora, com as instituições mais consolidadas, o senhor acha que a Constituição fez certo?
José Afonso da Silva — Eu acho que fez pelo seguinte: o mandato é popular. Ou se dá essa possibilidade ao povo através do recall — o que é complicado em um país tão grande como o Brasil — ou se dá o poder de cassar à Casa a que pertence o congressista.
ConJur — Mesmo com a condenação?
José Afonso da Silva — Mesmo com a condenação.
Isso se fundamenta na autonomia dos poderes. No caso do parlamentar, se
outro poder cassa seu mandato há uma interferência. A casa respectiva
tem que cumprir seu dever porque a condenação seria apenas pressuposto
para a instauração do processo na Câmara.
ConJur — É um preço que a gente tem que pagar...
José Afonso da Silva — Pela democracia. Veja
bem: nós sabemos que as instituições parlamentares no Brasil são muito
ruins hoje. Eu não costumo generalizar, porque ainda há muita gente boa
lá dentro. Mas é ruim porque essa foi uma das coisas ruins que herdamos
do regime militar. A ditadura liquidou com as lideranças no país. A
renovação disso é muito longa e muito difícil. Por isso ainda estamos
vivendo este resquício doloroso.
ConJur — O texto
constitucional absorveu aspectos do Direito alemão, da Constituição
americana ou portuguesa. Tem algum aspecto genuinamente brasileiro?
José Afonso da Silva — Teve influência de
vários países. A Medida Provisória é de influência italiana. A
inconstitucionalidade por omissão veio da Constituição portuguesa. Da
Alemanha tem a organização do poder, especialmente da distribuição do
Poder Legislativo, competências comuns e complementares entre União,
estados e municípios. Na formação dos direitos fundamentais há
influência das convenções internacionais e declarações sobre direitos
humanos. No restante é mais problema nosso. Houve avanços imensos nos
direitos sociais. As lutas por saúde, educação e transporte de qualidade
se devem à nossa Constituição. Há também o sistema de seguridade social
que não se encontra em outros países. Há alguma coisa em Portugal e na
Espanha, mas aqui foi desenvolvida amplamente. O fortalecimento do
Ministério Público e a autonomia do Poder Judiciário são coisas nossas.
Isso tudo forjado pela Constituinte e em boa parte também na Comissão
Afonso Arinos.
ConJur — Fala-se muito da vontade do
legislador, principalmente em temas polêmicos — como foi o da união
estável homossexual recentemente, por exemplo. É possível definir essa
vontade?
José Afonso da Silva — Esse é um tipo de
interpretação absolutamente inadequada. Todo jurista sabe que a intenção
do legislador não tem nenhum valor, até porque não se sabe como é que
se apura essa intenção. O parlamento não tem vontade. Esse é um tipo de
interpretação muito querido pelos conservadores. Nos EUA, toda vez que a
Suprema Corte dá uma decisão mais progressista, surge um movimento
dizendo “não é isso que os founding fathers queriam”. Então
você também pode dizer: 'bom, mas essa intenção dele é a intenção sua,
você é que está querendo vencer'. Essa é uma posição subjetiva. No
Brasil, nenhum jurista aceita este tipo de interpretação. Quando se
volta para um texto constitucional, essa interpretação se insere em um
contexto formal e que vai adquirir sentido em face também dos demais
dispositivos e da realidade histórica.
ConJur — O senhor concorda com a afirmação de que a nossa Constituição é muito prolixa?
José Afonso da Silva — Ela nasceu de uma
negociação muito difícil. Cada um queria por alguma coisa do seu
interesse. Não se pode decidir de antemão se a Constituição vai ser
enxuta ou não. O processo histórico é que vai decidir o que ela vai
acolher. Em uma Constituição que teve uma participação popular muito
grande, é muito razoável que ela tenha acolhido muitas dessas
reivindicações. Certamente existem muitas regras que poderiam ser
reguladas pela legislação ordinária, mas foram inseridas na Constituição
porque ela lhes garante certa estabilidade.
ConJur — Então o senhor não vê isso como um defeito?
José Afonso da Silva — Todo conservador fala
isso. Eles querem que saiam de lá os direitos sociais, não querem que
saia o direito de propriedade. Querem que saiam o direito à saúde, o
direito do índio, o direito ao meio ambiente... Sim, se você tirar tudo
isso ela fica muito enxuta. Mas aí o povo fica absolutamente
desamparado. Todo conservador quer uma Constituição enxuta que garanta
apenas seu direito, o direito da elite.
ConJur — Ainda é possível afirmar que existe a Constituição de 88? Ela perdeu muito de sua essência?
José Afonso da Silva — No essencial, não, porque o núcleo fundamental da Constituição são os direitos fundamentais. Esses não foram atingidos.
ConJur — Qual é o alicerce que a mantém assim?
José Afonso da Silva — Logo no início, os
direitos fundamentais constituem um núcleo importante na Constituição. É
aí que está a vantagem. Há muitas emendas, às vezes muito tolas, para
mudar apenas um sinônimo ou as disposições transitórias. Mas não há
emendas que atinjam o núcleo importante da Constituição.
ConJur — A Constituição reconheceu e garantiu novos direitos. Isso saturou a Justiça?
José Afonso da Silva — Com certeza. O acesso à
Justiça foi melhorado, criaram-se as defensorias públicas. O povo
descobriu que tem direitos e a Justiça para satisfazê-los. Mas um dos
problemas da Constituição foi este: o Poder Judiciário ficou
praticamente intacto. Não se alterou quase nada. Foram criados o
Superior Tribunal de Justiça, cinco tribunais federais e nada mais.
Ficou tal como estava. Não se mexeu na base.
ConJur — O que o senhor propunha?
José Afonso da Silva — Na própria minuta que
eu apresentei na Afonso Arinos, tinha proposto uma descentralização. O
Tribunal de Justiça ficaria um tribunal de cúpula cuidando de coisas
muito gerais, os tribunais de segundo grau ficariam nas regiões do
estado e cuidariam apenas dos problemas daquela região. O processo não
tinha que vir para a capital, por exemplo. No âmbito federal eu propunha
a criação de um Tribunal Superior Administrativo para cuidar das causas
do poder público, o que aliviaria o Supremo e os tribunais superiores.
Isso eu também discuti na reforma do Judiciário.
ConJur —
Ao mesmo tempo que a Constituição ganhou novos dispositivos por meio de
emendas, outros sequer foram regulamentados. O legislador soube lidar
com esse texto constitucional?
José Afonso da Silva — Olha, interessante.
Todo mundo me faz essa pergunta. O que não percebem é que o que era
fundamental foi regulamentado. Temos o Estatuto do Idoso, da infância e
do adolescente, normas sobre previdência... Algumas regras até já
existiam, então não precisa criar outras. O que não foi regulamentado se
resolveu com iniciativa popular, em outros casos o Supremo decidiu. No
caso da lei para regulamentar as greves de servidor público, por
exemplo, entraram com mandado de injunção para mostrar que havia uma
omissão. O Supremo mandou aplicar a lei geral. Quando a falta de
regulamentação cria problema para algum grupo, a Constituição deu
instrumentos para solucionar, como a iniciativa popular, o mandado de
injunção.
ConJur — Então o senhor não sente nenhum tipo de aflição?
José Afonso da Silva — Eu não sou daqueles que
acham que a Constituição deve se aplicar toda e acabada. Não existe
democracia acabada. Democracia é um processo histórico, que se vai
realizando com o correr do tempo. Não se tem direitos fundamentais
acabados. Nunca se acaba de cumprir os direitos sociais ou qualquer
direito fundamental, até porque estão sempre aparecendo novos direitos.
ConJur
— O senhor pode explicar a classificação dos direitos sociais como
normas programáticas? Como isso influenciou a implementação desses
direitos?
José Afonso da Silva — A norma programática
não é mera intenção, mera crença. Ela tem eficácia. Na concepção que eu
sustentei, ela indica os fins do Estado para buscar realizar o bem comum
da população. Essa Constituição mudou muito isso. Era uma concepção de
uma Constituição que não tinha um tratamento de direitos sociais como a
atual, que indica os dispositivos para realizá-los. Se está previsto que
o poder público tem de criar essas condições não é mero programa. Eu
falo isso porque os conservadores têm uma concepção de chamar de
programáticas todas as normas incômodas, que são as que produzem alguma
coisa em favor do pobre. Por isso eu tenho usado muito pouco, ou quase
não uso mais, a expressão “normas programáticas”. Hoje prefere-se falar
em normas dirigentes ou normas de direitos de realização progressiva.
ConJur — Então o conceito de norma programática foi entendido de forma errada?
José Afonso da Silva — Essa era a concepção.
Todo mundo falava em norma programática como algo que não tinha
eficácia, a não ser que viesse uma lei para aplicá-la. Se não viesse não
teria efeito, eficácia, não valeria nada. Tratar o direito social como
mera ficção é uma forma de desqualificá-lo. Quando eu escrevi, era a
Constituição de 1967 que estava em vigor e ainda se falava em norma
programática. Naquela ocasião eu repelia a concepção de que elas não
eram direitos, que eram meras intenções ou coisa que o valha. Repeli
para dizer que elas eram regras, embora de eficácia limitada, mas
importantes para a interpretação das demais normas da Constituição e
porque indicavam o fim que o Estado deveria alcançar.
ConJur — O senhor acha que há algum tipo de subversão do uso da Ação Civil Pública para garantir direitos de particulares?
José Afonso da Silva — Muitas vezes o
Ministério Público usa a Ação Civil Pública indevidamente, mas se ele a
usa em benefício do direito social, isso é bom. Há situações em que a
Justiça determina ao Poder Público que interne determinada pessoa ou
forneça determinado remédio. Mas isso é bom. Eu sei que há determinadas
correntes que acham que isso não devia ocorrer, mas aquele que está
reivindicando precisa desse amparo. Eu acho que tudo que se faz em favor
da realização dos direitos fundamentais é bom.
ConJur — A Constituição harmoniza as questões sociais com as de mercado?
José Afonso da Silva — A Constituição
estabeleceu uma ordem com normas para favorecer uma economia consonante
com os direitos sociais. Mas medidas e emendas posteriores retiraram
tudo isso. Ficamos com uma ordem econômica tipicamente capitalista e,
portanto, em dissonância com os direitos sociais.
ConJur — Em questão tributária, o senhor acha que o pacto federativo precisa ser revisto?
José Afonso da Silva — Isso é um problema
histórico. Não tem muito o que mudar. O sistema tributário poderia ser
mais bem distribuído. Tem que se distribuir mais os encargos,
descentralizá-los. O que se pode fazer é descentralizar a prestação de
serviços, com maior participação dos estados e municípios na receita da
União. A legislação ordinária pode resolver isso. A crítica que em geral
se faz ao sistema tributário se prende ao percentual da carga fiscal em
relação ao PIB: 36%, 38% etc. Nunca aborda a questão da justiça fiscal.
O sistema é injusto, sobrecarrega mais os trabalhadores e a classe
média do que os ricos, sobretudo porque fundado nos tributos indiretos.
ConJur — O senhor acha que a sociedade está pronta para outras formas de participação direta?
José Afonso da Silva — Pronta ela sempre
esteve, só que nunca deram esse poder para ela. Muitas das leis
importantes, como a Lei da Ficha Limpa, têm sido elaboradas por
iniciativa popular. Um outro exemplo é da lei para aumentar o percentual
de financiamento à saúde, em tramitação no Congresso. É de iniciativa
popular. Os mecanismos existem. Tem só que pôr em prática. Quem não
gosta muito disso são os parlamentares. A iniciativa popular é
importante, o referendo também, mais do que o plebiscito.
ConJur — Por quê?
José Afonso da Silva — Plebiscito sempre foi
um instituto muito usado pelos governos autoritários para se manter no
poder, para obter vantagens. Mas como ele está sob o controle do
Congresso Nacional, pode ser usado. A Constituinte pôs na vontade do
Congresso o poder de convocar plebiscito. Foi tirado o arbítrio do
Executivo, para evitar sua utilização indevida.
ConJur — Por que o Supremo não se tornou uma corte exclusivamente constitucional?
José Afonso da Silva — Primeiro porque uma
corte constitucional não pode ser composta de membros vitalícios. Na
Constituinte se tentou fazer com mandato, mas não se conseguiu. Houve
pressão do Supremo. Ele atuou no sentido de manter praticamente como
estava. Ele é um tribunal que ainda tem que julgar a
inconstitucionalidade pelo critério difuso. Isso não é próprio de uma
corte constitucional, que também não tem de julgar processo criminal.
ConJur — Sua ideia de se criar um tribunal para dividir competência com o Supremo se traduziu com a criação do STJ. Hoje ambos estão sobrecarregados. Sabem separar uma questão federal de uma constitucional?
José Afonso — Em geral sabem. Ao defenderem
seus clientes, os advogados usam de tudo quanto é meio para levar o
processo lá para cima. É também um problema processual, cujas questões
precisam ser mais bem disciplinadas. O Poder Público, por exemplo,
recorre muito. Por isso eu proponho um tribunal administrativo.
ConJur — O senhor acha que tem excesso de instâncias recursais?
José Afonso — Eu acho que há muito recurso, não instâncias recursais. Muitos recursos poderiam ser eliminados.
ConJur — E a prerrogativa de foro?
José Afonso — Isso já é da tradição do país.
Eu não acho que haja prejuízo. Mas poderia ser no STJ em vez de ser no
Supremo, que não tem que ficar julgando crime.
ConJur — O direito de defesa perdeu espaço ou está ameaçado?
José Afonso — Eu acho que não é um problema
preocupante.Talvez haja um pouco de interferência com o direito de
defesa o instituto da delação premiada. Isso pode ter complicações
porque é um acordo do Ministério Público homologado pelo juiz sem
participação da defesa.
ConJur — Imaginava que o Supremo teria esse protagonismo? Acha que ele está muito exposto?
José Afonso da Silva — Esse é o único tribunal
no mundo que fica realmente exposto. Tem até uma televisão que fica
focalizando tudo. Isso tem a vantagem da transparência, mas os ministros
ficam querendo se mostrar, nessa coisa de vaidade... É um caminho sem
volta. Ninguém supunha que fosse haver uma televisão no Supremo, mas
como a Câmara e o Senado têm... Nas casas legislativas é até
justificável, porque são representantes do povo.
ConJur — Como o senhor avalia a composição atual do Supremo?
José Afonso da Silva — Não vou fazer
apreciação individual de ministro. Acho que toda vida o Supremo teve
ministros excelentes e ministros ruins. No geral está bem. Você tem
ministros que não deveriam estar lá, como sempre teve. Quem sabe
melhora.
ConJur — O Supremo julga mais por princípios ou por política?
José Afonso da Silva — O Supremo Tribunal
Federal, como todo tribunal constitucional, tem uma dimensão política.
Isso é inequívoco. A Constituição também tem um conteúdo político muito
grande. Por isso, o tribunal não pode ser puramente técnico. Do
contrário, ele não entende a Constituição.
ConJur — O senhor vê ativismo judicial?
José Afonso da Silva — Nem toda criatividade
via interpretação é ativismo judicial. A partir de regras muito gerais,
se constrói um instituto. Você tem ativismo judicial distorcido, desde
que se faça coisa que não está prevista na Constituição. Quando um
ministro, por exemplo, dá uma medida liminar para não se seguir a
tramitação de um veto, isso é um abuso, porque não cabe ao Judiciário
interferir na tramitação de vetos, por exemplo.
ConJur — Se a solução encontrada pelo julgador está amparada na Constituição, não pode ser considerada ativismo?
José Afonso da Silva — Se está amparada na
Constituição, não. Por exemplo: chamaram de ativismo aquela decisão do
TSE, que foi mantida pelo Supremo, a respeito da fidelidade partidária.
Decidiu-se que os votos pertencem ao partido e não ao parlamentar e,
portanto, se ele sai do partido, perde o mandato. De fato, a
interpretação foi razoável, porque no sistema de representação
proporcional, os votos são realmente do partido.
ConJur — O que senhor acha das súmulas vinculantes e da repercussão geral?
José Afonso da Silva —
A súmula
vinculante tem um problema delicado: ela cria uma forma de precedente
que impede a interpretação dos juízes de primeira instância. Os juízes
que estão mais próximos dos fatos é que contribuem para a evolução da
jurisprudência e do Direito. A Súmula Vinculante tolhe isso. Por isso
que eu digo que é preciso fazer mudanças como, por exemplo, a criação de
outros tribunais para neles serem redistribuídas atribuição do Supremo,
para que ele não fique arranjando empecilhos para o processo não chegar
lá. O mesmo vale para a Repercussão Geral.
ConJur — A Ordem dos Advogados do Brasil tem a mesma relevância política de 25 anos atrás?
José Afonso da Silva — Durante o regime
autoritário ela atuou com uma visão democrática. Hoje ela tem a mesma
visão. Só que hoje estamos em uma democracia e não precisa ter aquele
confronto. Por isso a OAB não precisa desempenhar o mesmo papel daquela
época. Hoje ela atua em outros campos, como nas ações diretas de
inconstitucionalidade, por exemplo. Já depois da Constituição ela teve
um papel fundamental no impeachment do Collor. Toda vez que aparece um problema dessa natureza, ela atua. Sua importância continua sendo a mesma de sempre.
ConJur — Como o senhor avalia o Ministério Público?
José Afonso da Silva — O Ministério Público
recebeu pela Constituição de 1988 uma institucionalização muito
importante. Ele tem se servido disso e às vezes com certo abuso. Por
exemplo: ele não tem poderes de investigação criminal, mas ele exerce
esse poder. Mas o papel do Ministério Público hoje é de alta importância
para a defesa de direitos importantes, como os direitos difusos, do
meio ambiente. Se não fosse a atuação do Ministério Público, essa defesa
seria muito menos desenvolvida.
ConJur — A Defensoria Pública poderia estar mais consolidada?
José Afonso da Silva — A Defensoria Pública
não é nova. Já havia duas ou três antes da Constituição. Mas foi com a
Constituição que ela realmente se estabeleceu. Como toda instituição,
ela tem de se organizar, criar suas bases. Acho até que ela está
querendo assumir coisas que não devia, como a defesa de direitos
difusos, por exemplo. Ela foi criada para a defesa dos direitos dos
necessitados.
ConJur — O senhor é um dos juristas mais citados no Supremo. O que acha disso?
José Afonso da Silva — Eu poderia lhe
responder com aquele dito “falem de mim, ainda que falem mal”, mas não é
o que eu penso [risos]. Eu me sinto muito honrado com a utilização do
meu nome como jurista. É claro que nem todos concordam comigo, o que é
normal, assim como eu não concordo com todos. O direito é uma ciência
interpretativa e essa interpretação depende de muitos fatores subjetivos
e objetivos. É muito normal que alguém discorde. Meu filho [Virgílio Afonso da Silva, professor titular do departamento de Direito do Estado da USP] discorda de mim, mas eu não tenho que achar ruim por isso. A ciência jurídica se faz exatamente nessa dialética dos contrários.
ConJur — O senhor se incomoda quando desvirtuam sua tese?
José Afonso da Silva — Isso não é muito
frequente, mas acontece. Eu não tenho o que fazer ou ficar debatendo com
as pessoas. Se eu tiver a oportunidade de escrever alguma coisa, eu
digo: “olha, o senhor utilizou indevidamente do meu ponto de vista”.
Isso eu já fiz em algumas oportunidades.
Leonardo Léllis é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 13 de outubro de 2013
Fonte: Conjur.com.br, 13/10/13, disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-out-13/entrevista-jose-afonso-silva-jurista-doutrinador-constitucionalista