sábado, 26 de outubro de 2013

Artigo: Anistia em branco não! (Jornal O Povo)

Durante o processo, o Brasil não negou a responsabilidade sobre os fatos

Marcelo Uchôa
Advogado e professor de Direito Internacional e Direitos Humanos/Unifor 

Em 24/11/10, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund e outros, por desaparecimentos forçados, falta de acesso a informações e ineficácia de meios jurídico-administrativos em restabelecer a verdade e a justiça sobre as ações das forças armadas durante a Guerrilha do Araguaia, perpetradas na forma de detenções arbitrárias, torturas, vedação de acesso a tribunais e meios de defesa, execuções sumárias e ocultações de corpos de militantes contrários à ditadura, e impedimento, até hoje, de acesso de familiares a informações precisas sobre fatos relacionados ao extermínio e paradeiro das vítimas.

Durante o processo, o Brasil não negou a responsabilidade sobre os fatos. Ao contrário, afirmou ressentir-se pelos excessos cometidos e lamentou a dor dos parentes. Disse haver organizado missões de busca no local e instituído leis visando à verdade. Mas até agora descumpriu a condenação em seus pontos mais importantes: na localização e entrega dos restos mortais e na penalização dos responsáveis pelos crimes.

Quanto à primeira sanção, alega haver tentado elucidar os acontecimentos por diversos meios, concordando em continuar. Mas afirma não poder cumprir a segunda, porque a Lei 6.683/79 (Lei de Anistia) anistiou os agentes da ditadura que cometeram crimes durante o regime militar, posição consolidada pelo STF quando julgou improcedente a ADPF 153, da OAB, em 29/04/10.

Só que, à parte a questão ética, juridicamente o Brasil não pode se insubordinar contra a decisão da Corte Interamericana. À medida que o país, espontaneamente, se sujeitou à Convenção Americana de Direitos Humanos (25/11/92), automaticamente aceitou a jurisdição do tribunal, admitindo o controle de convencionalidade sobre o direito interno quando conflitante com normas internacionais. Por isso, considerando que o desaparecimento forçado é tido internacionalmente como crime lesa humanidade, convertendo-se o correlato direito de investigar e punir em norma jus cogens (imperativa), sua ação delituosa jamais poderá prescrever, menos ainda ser anistiada.

Esta é a compreensão da ONU, do Tribunal Europeu e da Comissão Africana dos Direitos Humanos, do Tribunal Penal Internacional, e da Corte Interamericana. Não por acaso vários países do continente já conformaram suas leis à Convenção, p. ex, Colômbia, Chile, Argentina, Peru e Uruguai.

Falta agora o Brasil cumprir sua obrigação de reinterpretar a Lei 6.683/79, para investigar e responsabilizar os agentes da ditadura envolvidos no caso Araguaia e em todos os demais crimes do período militar. Afinal, segundo bem sublinhou a sentença, a lei de anistia não pode ser uma lei de ponto final que impede o acesso à justiça, uma anistia em branco para qualquer delito que viole o dever internacional estatal de proteção aos direitos humanos.


Fonte: Jornal O Povo, 26/10/13, disponível em:  http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2013/10/26/noticiasjornalopiniao,3153025/anistia-em-branco-nao.shtml

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