quarta-feira, 6 de julho de 2011

Entrevista concedida à Associação Cearense de Magistrados - 05 de Julho de 2011

Advogado e professor de Direito da Universidade de Fortaleza (Unifor), Marcelo Uchoa assumiu recentemente a Coordenadoria de Políticas Públicas dos Direitos Humanos do Estado do Ceará (CDH). Se afirmar direitos humanos num mundo marcado por desigualdades já é um desafio por si só, sob a ótica da CDH este desafio ganha nuances, segundo Uchoa. Falar das estratégias diante do que se tem que enfrentar foi o mote para a nossa conversa que também colocou em pauta uma reflexão sobre o papel do Judiciário e das políticas afirmativas.


ACM Notícias: Recentemente, o senhor assumiu Coordenadoria de Políticas Públicas dos Direitos Humanos do Estado do Ceará (CDH), criada em janeiro deste ano. Tratando há pouco tempo de questões tão complexas, quais os desafios imediatos enfrentados pela Coordenadoria?

Marcelo Uchoa: Afirmar direitos humanos num mundo marcado por desigualdades já é, por si só, um grande desafio, mas, em nosso caso específico, há ainda outros reptos que tornam nossa responsabilidade mais difícil como, por exemplo, o desafio de integrar uma série de políticas que já existem dentro do Estado, mas que vêm sendo materializadas no interior das diversas secretarias, isoladamente, cada uma no seu próprio compasso, o desafio de monitorar o cumprimento dessas políticas, o desafio de propor novas estratégias, o desafio de levar as ações de direitos humanos para o interior, enfim.

ACM Notícias: Há uma previsão de que no segundo semestre seja elaborado um plano estadual de Direitos Humanos. O senhor poderia detalhar seus pontos e seu processo de elaboração?

Marcelo Uchoa: Na verdade, um Plano Estadual de Direitos Humanos já existe, fruto da 4ª Conferência Estadual de Direitos Humanos havida em 2008. O que ocorre é que nosso Plano é anterior ao Plano Nacional de Direitos Humanos - PNDH3 (Dec. 7037/09), portanto, precisa de adaptações pontuais para adequar-se às novas diretrizes. Neste caso, não precisaremos mobilizar conferências. Estamos pensando em reunir os protagonistas da edição anterior, com o suporte de outras entidades da sociedade civil interessadas no debate, abrir a discussão e decidir sobre as alterações. A proposta otimizaria tempo, recursos públicos e certamente seria mais efetiva.

ACM Notícias: Além do plano, quais são as estratégias adotas pela CDH para enfrentar esses desafios?

Marcelo Uchoa: A curto prazo estamos trabalhando na consolidação do Coletivo Estadual de Gestores de Direitos Humanos, que é um grupo composto por representantes das diversas secretarias e coordenadorias do Estado que lidam em seu cotidiano com ações de direitos humanos. Será a partir daí que conseguiremos integrar, pensar coordenadamente e monitorar o conjunto de políticas estaduais da área. Também a curto prazo estão as adaptações do Plano Estadual de Direitos Humanos, como você citou, e também a reformulação do Conselho Estadual de Direitos Humanos. Além disso, há a preparacão para a recepção da primeira Caravana dos Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República no país, que acontecerá no Ceará, nos próximos dias 2 e 3 de agosto. A médio prazo estão a implementação de políticas de educação em direitos humanos para a capital e o interior do Estado, voltada para a capacitação e multiplicação de militantes, gestores e defensores de direitos humanos, além disso a viabilização de um centro de Referências em Direitos Humanos, com a atribuição de assessorar jurídica, social e psicologicamente os segmentos excluídos da população e fazer um link com o disque denúncia 100 da SDH, além de promover palestras e oficinas temáticas.

ACM Notícias: E a longo prazo, quais as metas estabelecidas?

Marcelo Uchoa: A longo prazo, podemos, de certa maneira, catalogar a inserção definitiva de uma semana dos direitos humanos em nosso calendário e consolidar a continuidade de nossas campanhas pontuais que, esperamos, não sejam apenas episódicas, mas permanentes. Campanhas como o combate à violência sexual contra crianças e adolescentes, contra o trabalho escravo, o trabalho infantil, em prol das pessoas em situação de rua, enfim, principalmente durante os trabalhos relacionados à Copa de 2014.

ACM Notícias: Em sua opinião, como a magistratura pode atuar na garantia dos direitos humanos?

Marcelo Uchoa: A magistratura pode, e muito, ajudar na garantia dos direitos humanos, não apenas a partir de um agir humano na hora de receber as partes, cuidar dos processos, inserir-se de modo sensível no mundo forense, mas, principalmente, na hora de fundamentar suas decisões. O magistrado precisa ser sempre um humilde para assumir que, como humanos, esquecemos, às vezes, de ensinamentos banais, de tal maneira que, consoante disse Carlos Ayres Britto, um ir e vir constante e permanente à Constituição é sempre prudente e necessário. Até mesmo porque nossa Constituição é aparentemente a mesma, mas, na prática, ela muda para o intérprete a cada novo olhar. E essa revisão de orientação precisa sintetizar o amadurecimento, o aperfeiçoamento técnico e as experiências de vida do magistrado, mas sempre à luz os princípios fundamentais.

ACM Notícias: Que estratégias podem ser usadas para sensibilizar os operadores do Sistema de Justiça para a questão dos Direitos Humanos? Apesar da produção teórica, este ainda é um tema distante das práticas processuais?

Marcelo Uchoa: A sensibilização destes operadores não é tarefa fácil, apesar do Sistema de Justiça, em si, ser uma consequencia da existência de direitos humanos e da própria justiça ser um valor humano básico. É difícil porque historicamente o Poder Judiciário foi “blindado” frente as transformações pelas quais a sociedade brasileira e a própria República experimentavam. O Judiciário foi construído e se consolidou enquanto Poder, a partir de uma lógica hermética, distante do povo e fechada para uma interpretação normativa humana. Por outro lado, os cursos de direito seguiram a mesma lógica aristocrática, tornando a formação conservadora do operador do Sistema de Justiça em algo continuado. Evidentemente que falo aqui em termos gerais, pois exceções sempre existem, e se atualmente a coisa parece caminhar melhor é porque resistência sempre houve. Penso que a consolidação da democracia no país vem mudando isso. Ao contrário de até pouco tempo, hoje há um consenso não apenas teórico, mas prático, sobre a importância da Constituição na unidade, coerência e completude do ordenamento jurídico. Isso é um grandíssimo passo para a garantia da manutenção da estabilidade institucional. E como conseqüência desta tendência constitucionalista, o Judiciário também vem se transformando. O Conselho Nacional de Justiça, por exemplo, se não é perfeito em muitos pontos, pelo menos vem garantindo que as discussões sobre o acesso à Justiça, sobre a postura e as estratégias judiciárias se perpetuem. As escolas jurídicas também vêm se multiplicando e melhorando seus currículos, tanto em nível de aperfeiçoamento quanto de formação. O perfil do operador do Sistema de Justiça também é diferente do perfil de outros tempos. Enfim, esse conjunto de fatores com toda certeza implicará numa melhora das práticas processuais, apesar desse processo evolutivo ser geracional, demorado, embora de urgente necessidade.

ACM Notícias: Em alguns países, os direitos humanos estão ligados aos conflitos motivados por diferenças étnicas, culturais ou políticas. No entanto, no Brasil, sua busca ainda está imbricada com a garantia de direitos básicos como saúde e educação. Como o senhor avalia isso?

Marcelo Uchoa: Com relação à efetivação dos direitos humanos, todos os países possuem desafios semelhantes, porque nenhum conseguiu, ainda, superar o conjunto de seus problemas básicos. Esse dilema é inerente ao capitalismo, pois este é um sistema contraditório e conflituoso por natureza. Portanto, o que diferencia o Brasil de países ditos mais evoluídos em termos de direitos humanos é a dimensão que precisamos dar à defesa de certos direitos em relação a outros, dada a imperiosidade do problema. Essa espécie de “escolha de Sofia” é que torna nossa tarefa muito mais difícil, porque os direitos humanos formam uma cadeia conectada, indissociável, de maneira que não contemplaremos o sistema se não atacarmos todos os problemas concomitantemente. Mas a tarefa de pensar uma solução para esse complexo paradoxo é da filosofia. Nós enquanto gestores de direitos humanos precisamos analisar os fatos, avaliar boas experiências, ouvir nossa intuição e partir para o enfrentamento. Aproveitando seu exemplo, nessa eleição de problemas, saúde e educação serão sempre prioridades porque funcionam como ferramentas para que conflitos motivados por diferenças sejam compreendidos e eventualmente atacados. Mas o fato é que essa escolha de desafios, ou melhor, toda democratização da discussão sobre direitos humanos precisa ser ampla. Não apenas porque o empoderamento social constitui uma evolução ética, mas porque o alcance ou não da estratégia perfilada não depende apenas da racionalização da ação, mas de muitos outros fatores, de tal maneira que a sociedade deve estar junta para comemorar a vitória e também para responsabilizar-se pela eventual derrota, principalmente porque no caso da gestão pública, dinheiro público está sendo investido.

ACM Notícias: Por fim, além dos direitos básicos, como o senhor vê a implantação das políticas afirmativas? O que devemos superar internamente para fazermos jus ao status de potência ascendente que o Brasil tem conquistado nos últimos anos?

Marcelo Uchoa: Acho que nessa discussão Boaventura Sousa Santos disse tudo: “temos o direito a sermos iguais quando a diferença nos inferioriza, temos o direito a sermos diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”. Existem discriminações que se distanciam do valor da igualdade, sendo, portanto, antiéticas, as discriminações negativas. E existem discriminações eticamente aceitáveis, porque balanceiam situações que se tomadas de modo categoricamente semelhantes conduziriam a tratamentos injustos, já que no mundo ninguém é ou está situado no mesmo plano, nem age sempre da mesma maneira. São as discriminações positivas, que se traduzem em ações afirmativas, ou seja, estratégias compensatórias que precisam ser planejadas e efetivadas para que a igualdade efetiva seja estendida a segmentos sociais historicamente desprestigiados por razões culturais ou ideológicas, alvos permanentes de discriminações negativas em questões de origem, etnia, raça, gênero, orientação sexual, idade, condição física, opção política, crença, situação econômica, etc. Contudo, paralelamente a isso, é importante ter-se em mente que ações afirmativas, apesar de possuírem um sentido positivo, não deixam de ser sempre discriminatórias, daí porque se mantêm num liame entre uma compensação justa e um divisionismo social. E para não caírem neste abismo social precisam ser operadas dentro dos limites constitucionalmente fixados, com fundamento e razoabilidade. Além disso, como medidas compensatórias, também serão sempre provisórias até que um equilíbrio moderado pela igualdade efetiva seja encontrado. Tratadas dessa maneira, com este olhar humano e racional, certamente as ações afirmativas serão bem compreendidas pela maioria da população, inclusive por setores supostamente incomodados com suas incidências.

Marcelo Uchoa é bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (1996), mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (2007) e doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca (Espanha) no programa "La regulación del mercado de trabajo".


Fonte: http://acmag.org.br/noticias/1322/05072011/Entrevista:+Marcelo+Uchoa.html

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