O Ministério Público Federal
(MP) está investigando mais de 70 casos de abusos aos direitos humanos
cometidos pelo regime militar para propor ações criminais contra agentes
da repressão responsáveis por mortes ou desaparecimentos no Brasil.
A informação é do Procurador da República Marlon
Weichert, que conversou com a BBC Brasil durante um seminário do
Transitional Justice Research Group da Universidade de Oxford para
discutir o que vem sendo chamado de "justiça de transição" - as medidas e
iniciativas introduzidas em vários países para lidar com violações aos
direitos humanos de regimes autoritários e guerras civis.
No entendimento de alguns promotores
brasileiros, a Lei de Anistia, que tem garantido impunidade por abusos
contra direitos humanos cometidos durante o regime militar, não pode ser
aplicada em casos de crimes mais graves, como sequestro, tortura e
morte sob custódia.
Eles argumentam que a decisão da Corte
Interamericana dos Direitos Humanos sobre o caso Araguaia trouxe novos
parâmetros para a interpretação da Lei de Anistia, e estão empenhados em
levar militares e policiais ao banco dos réus com base nessa nova
interpretação.
Em 2010, a Corte exigiu que o Brasil
investigasse e punisse os responsáveis pelas mortes no Araguaia e
condenou o uso da Lei de Anistia para impedir a perseguição criminal de
agentes da repressão.
Envolvido nas buscas de corpos de desaparecidos
desde 1999, Weichert é um dos mais ativos defensores dos direitos das
vítimas da repressão dentro do Estado brasileiro. Instaurou inquéritos
que permitiram a retomada da identificação das ossadas do cemitério de
Perus e a reunião de provas sobre a repressão no Araguaia.
Segundo o promotor, dois grupos de trabalho
foram criados no MP no ano passado para montar casos contra policiais e
militares: um focado em investigações criminais, outro dedicado a ações
civis pedindo que torturadores reembolsem o Estado pelas indenizações a
suas vítimas.
Um precedente importante nessa área foi criado
na semana passada, quando o coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante
Ustra foi condenado por uma corte paulista a pagar R$ 100 mil a
familiares do jornalista Luiz Eduardo Merlino, torturado e morto em
1971.
Ao contrário do que acabou ocorrendo em países
como Chile e Argentina, juízes brasileiros ainda resistem muito em
aceitar exceções ou reinterpretar a Lei de Anistia.
Antes da decisão da Corte Interamericana dos
Direitos Humanos, o Supremo Tribunal Federal respondeu a um pedido da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para revisar a aplicação da Lei de
Anistia dizendo que não cabia ao Judiciário revisar o "acordo político"
que resultou na adoção dessa lei.
A seguir, a entrevista de Weichert à BBC Brasil:
Marlon Weichert, procurador da República
BBC Brasil - A recusa do Supremo Tribunal Federal de reinterpretar a Lei de Anistia não encerrou o assunto?
Marlon Weichert - Não. A
decisão da Corte Interamericana foi emitida depois disso e diz que a
anistia não pode barrar punições por violações graves. Ao reconhecer a
jurisdição da Corte, o Brasil aceitou que houvesse um duplo crivo para a
análise de casos de abusos aos direitos humanos no país. A Lei de
Anistia não passou pelo segundo crivo.
BBC Brasil - Mas a decisão da Corte foi ignorada pelo Brasil...
Weichert - Para nós, do MP, a decisão foi um
divisor de águas e somos um órgão do Estado. Hoje mais de 70
investigações estão em curso para embasar ações criminais contra
policiais e militares - e a maioria foi aberta no último ano.
BBC Brasil - O que mais está sendo feito?
Weichert - Foram formados dois
grupos de trabalho no qual estão trabalhando de 20 a 30 promotores. Um
para ações civis e outro para criminais. O primeiro grupo abriu oito
processos contra torturadores e pessoas que ajudaram a ocultar corpos e
há mais dez investigações em curso. Pedimos que agentes da repressão
sejam impedidos de exercer cargos públicos, tenham seus proventos de
aposentadoria cassados e sejam obrigados a repor aos cofres públicos
indenizações pagas a vítimas e familiares.
O segundo grupo toca essas 70 investigações
criminais. Duas ações já foram requeridas na Justiça (contra Ustra e o
coronel reformado Sebastião Curió). Por enquanto, os juízes não têm sido
favoráveis, mas esperamos uma mudança.
BBC Brasil - Há consenso sobre o tema no MP?
Weichert - Não. Mas os
promotores agem com independência. Quando começamos a buscar
desaparecidos só eu e uma colega apoiávamos ações criminais. Agora,
metade dos promotores parece ser favorável a essa posição. Além disso,
no ano passado a Coordenação dos Direitos Humanos e a de Direito
Criminal do MP estabeleceu que deveríamos cumprir a decisão da Corte
Interamericana.
BBC Brasil - Como essas investigações se articulam com a Comissão da Verdade?
Weichert - Pode haver uma
sinergia (entre as investigações), embora não haja dependência. Nossas
investigações têm por base pesquisa documental e depoimentos das
vítimas.
BBC Brasil - Mas por que o empenho do MP nesse momento? Por que os juízes mudariam de ideia?
Weichert - A Constituição
atribuiu ao MP o dever de defender os direitos humanos e buscar ações
penais. É nossa obrigação abrir esses processos. Hoje há preconceito dos
juristas brasileiros com o direito internacional. Temos uma cultura
jurídica de 50 anos atrás. Mas vários países passaram por essa transição
e acabaram aceitando a autoridade do direito internacional. No Brasil
não será diferente. Na pior das hipóteses em quatro ou cinco anos a
decisão da Corte Interamericana acabará sendo cumprida. E mesmo antes
disso teremos decisões favoráveis.
BBC Brasil -O Brasil
começou sua política de reparações pelas indenizações financeiras.
Desembolsou mais de R$ 2 bilhões antes que uma comissão da verdade
abrisse o debate sobre os danos a serem reparados. Além disso, as
maiores indenizações não foram para parentes dos mortos, mas para
aqueles forçados a abandonar altos cargos no período autoritário. Isso
tudo não prejudicou a causa das vitimas frente a opinião pública?
Weichert - Talvez esse não
tenha sido o melhor caminho, mas foi o caminho possível. Não há receita
de bolo para se fazer "justiça de transição". No caso da política de
indenizações, o problema foi o desenho das leis que a definem.
BBC Brasil - O que esperar da Comissão da Verdade?
Weichert - Ela cumpre um papel
crucial, embora sem punições seu trabalho estaria incompleto. A punição
de uma pessoa dissuade outras de cometerem o mesmo crime e ajuda a
prevenir de forma geral as violações aos direitos humanos. Ainda assim, a
comissão pode ter um grande impacto se ajudar a acabar com os enclaves
autoritários nas instituições brasileiras. Ainda temos estatutos
escritos na ditadura regendo a ação de militares e policiais.
BBC Brasil - O brasilianista Anthony
Pereira, do King's College, diz que o Judiciário brasileiro é reticente
em aceitar processos contra militares porque muitos perseguidos
políticos passaram pelos tribunais durante o regime. Como vê essa tese?
Weichert - O Judiciário precisa
fazer uma autocrítica ao seu papel no regime. O fato de o Congresso e a
Justiça continuarem ativos deu uma fachada de legalidade à ditadura e
hoje complica a depuração do que aconteceu no Brasil – porque no
imaginário de parte da sociedade não houve ruptura. Por isso é
importante que a Comissão da Verdade promova uma avaliação do papel das
instituições no regime militar. Ela poderia convidar não só o
Judiciário, mas também o MP e outras instituições para tentar entender
por que aderiram a um sistema arbitrário ilegal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário